quinta-feira, 16 de setembro de 2010

ENGODO WE TRUST


Terminou a faculdade de Letras em 1997, Português e Inglês, na UERJ, a muito custo, trabalhando de boy no Centro e estudando à noite. Passou no concurso do Estado. Dava aulas em Belford Roxo e Caxias. Tinha alunos que iam na escola só pra fazer movimento de drogas e ficavam zoando a aula. Desrespeitavam, mandavam ele tomar no cu, tacavam bolinha de papel com cuspe na cara dele. Ganhava uma mixaria que não dava nem pra pagar o aluguel direito. Com a Milena dizendo que tava grávida que a situação ficou pior ainda. Quase foi em cana duas vezes porque a pensão atrasou. Começou a dar aulas particulares de Inglês na Zona Sul. Mesmo assim vivia na pindaíba, morando numa quitinete no Cosme Velho. Depois que separou da Milena, era ligação quase toda semana pra encher o saco: remédio pro Carlinho, roupa, dinheiro pra passeio, pra material escolar. Um inferno.
Quando o Ranieri ligou dizendo que tava partindo pros States ele teve novas esperanças. Trampar no exterior, fosse no que fosse, iria ser muito mais vantajoso. Assim que o Ranieri ligou de Branford dizendo que tava ganhando mais de dois mil dólares por mês ele tomou a iniciativa. Tirou passaporte. Falsificou até contracheque e carteira profissional. Arriscou. Podia ir até preso por isso, mas tinha que arriscar. Na entrevista do consulado disse pro vice-consul que era professor do Pedro II, em inglês mesmo pra tirar onda, e que iria pro Estado de Connecticut à passeio. Conseguiu a tão almejada autorização. Vendeu a CB 400. Pediu uma grana emprestada pra mãe. States, lá vou eu! Gritava enquanto fazia as malas. Não avisou nada pra Milena. É claro que ela iria botar areia.Viajou.
O primeiro trampo que o Ranieri conseguiu pra ele foi de garçom num restaurante, em Branford mesmo. Trabalhador clandestino, é claro. O gerente todo dia o discriminando, chamava de macaco, de brasileiro sujo, de chicano. Ficou de saco cheio, pediu conta. Serviço não era difícil de achar, mas só sub-emprego. Sujeitou-se a condições de trabalho humilhantes e degradantes. Limpador de fossa, carregador de caixas, lavou bunda branca de velhos num asilo em Danbury. Na cidade de Hartford trampava de dia numa espécie de IML limpando defunto e à noite numa delegacia fazendo faxina nas celas dos presos. Trampo asqueroso. Rodou quase todo o estado pegando tudo quanto era tipo de serviço e fugindo da Imigração. Passou um ano nesse sufoco. A grana era boa mas os gastos eram altos também. Não conseguiu fazer um pé-de-meia. Começou a ficar desesperado. A situação tava pior que no Brasil. Pensou em desistir.
Tava num ônibus indo de Bristol para Branford, lendo o livro Lucia McCartney do Rubem Fonseca quando, não tendo nada pra fazer na viagem, pegou o conto Zoom e traduziu do português para o inglês. Era bom nisso.
Chegando em Branford teve uma idéia talvez o tirasse da lama: foi na cara-de-pau na redação do Westport News, apresentou-se para o chefe de redação como jornalista autodidata. Inventou uma mentira de que era brasileiro fazendo uma pesquisa sobre o jornalismo gonzo norte-americano e apresentou o conto traduzido como se fosse seu, perguntando se os interessaria publicá-lo. O redator leu e adorou-o. Adiantou seiscentos dólares na mão. Seiscentos dólares! Precisaria de lavar muita bunda de velho pra conseguir essa grana. Moleza! Ficou entusiasmado com a idéia. Ligou para o redator e disse que tinha outros contos e crônicas para enviar. O redator, além de concordar em publicar, deu o endereço de outros jornais para que ele oferecesse seu excelente trabalho.
Pegou todos os livros de contos e crônicas de escritores brasileiros que tinha levado pros States e começou a traduzi-los, manhã, tarde e noite. Ligou pra mãe e pediu que ela enviasse pelo correio mais alguns livros. Verteu para o inglês mais de duzentas crônicas e cento e trinta contos em menos de um mês.
Passava quase que todo o tempo em casa, só traduzindo e traduzindo. E vendia para os jornais. Sua renda chegou a quase quinze mil dólares semanais. Sua obra estava sendo tão bem recebida que conseguiu publicação em quase todos os jornais da região. Mandou, nesse esquema de tradução, várias crônicas e contos de autores brasileiros para uma porrada de periódicos. Mantinha uma certa regularidade de autor por jornal: Carlos Drummond de Andrade para o The Norwalk Citizen-News, Nelson Rodrigues para o The Darien News-Review, Rubem Alves para o Westport News, Rubem Fonseca para o The Connecticut College Voice, Carlos Heitor Cony para o Connecticut Post, Luis Fernando Verissimo para o Hartford Courant, Marcos Rey para o Meriden Record Journal, Clarice Lispector para o Amity Observer, Otto Lara Resende para o The News-Times, Sérgio Sant’Anna para o The Fairfield Citizen-News, Murilo Rubião para o Greenwich Time, Moacyr Scliar para o Guilford Courier, José J. Veiga para o The Wesleyan Argus, Millôr Fernandes para o The New Haven Register, Luiz Vilela para o The Yale Herald, Machado de Assis para o Yale Daily News, Lygia Fagundes Telles para o New London Day, Mário Prata para o Newtown Bee, e Fernando Sabino, que achava mais fácil de traduzir para os jornais Norwich Bulletin, Waterbury Republican-American e The Chronicle. Tudo como se fosse de sua própria autoria, é claro.
Começou a ministrar palestras em universidades. Ficavam impressionados com a sua “versatilidade de estilos e vozes completamente díspares”. Propuseram publicação em livro. Entrevistas freqüentes. Comia nos melhores restaurantes. Ranieri largara o serviço de garçon e tornou-se seu agente literário, ficava fazendo contatos. Ficou, então, muito conhecido no meio literário e jornalístico em quase todas as cidades do estado: Bridgeport, Woodbury, New Haven, Fairfield, Meriden, Middletown, Norwalk, Manchester, Southington, Waterbury, Bristol, Danbury, Newtown, Darien, Greenwich, Hartford, Guilford, Middletown, Willimantic, Stamford e principalmente em Norwich.
Até que numa fatídica entrevista, marcada às sete da manhã, o jornalista Michael Thompson do Journal Inquirer de Manchester, o desmascarara. Disse pra ele que havia pesquisado e descoberto toda a mentira. Contou que já tinha até o título da denúncia, trocadilhando pra chamada de capa, ironicamente, em português-inglês: Engodo We Trust.
Não tinha jeito, disse Michael num tom implacável, a notícia da farsa literária já estava pronta pra sair na publicação do dia seguinte: 12 de setembro de 2001.

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