Aos olhos agudos do pai, exausto, terminava a vigésima sessão de flexões. Queixo no chão olha pro coturno do pai, os que sempre usou. Desde criança nunca o viu usar outro tipo de calçado. Distrai-se.
- Vamos lá garoto. Tem que estar preparado se quiser entrar pra carreira militar, sem frescuras, corpo rijo, resistência, disciplina. Vamos lá, vamos lá...
Estava determinado a entrar para a prestigiada Brigada Pára-quedista na Vila Militar. Morava ali perto, num bairro classe média-baixa da Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro. Passou a infância vendo os paraquedistas, aos montes, flutuando no céu.
O pai, dando mais ordens, aos berros:
- Garoto. Saiba que será pedreira entrar e resistir durante o tempo que ficar nas Organizações Militares da Brigada de Infantaria Pára-quedista, e terá que lutar duro pra conquistar os respeitados e cobiçados coturnos de couro marrons!
Ele obedecia as ordens do pai e malhava duro pra desenvolver além do normal os ainda adolescentes músculos em crescimento. E conseguiu. Arduamente. Diariamente. Aulas particulares de muay-tay, grego-romana, boxe. O pai sempre ao lado gritando: “Disciplina e força”. “Disciplina e força”.
Militar reformado, nacionalista convicto e ex-integralista, tinha nele, o filho mais novo, a esperança de continuar o legado ideológico e militar.
O mais velho, depois da surra dias antes levada pelo pai, poucas vezes aparecia em casa. Nunca estava com a família.
Até que em um almoço de domingo ele aparece de cabelo comprido, cílios postiços, saia e rosto pintado. Com namorado a tira-colo. O pai, ainda um colosso de músculos, apesar da idade, deu a surra ali mesmo e escurraçou os dois travestidos. “Verme imundo”. “ Nunca mais apareça nessa casa”. “Aqui é casa de família que não entra pederasta!”
Foi a última vez que viu o irmão. Última não, penúltima. A última foi três meses antes do exame pro ingresso militar. Estava ele lá na academia montada pelo pai no quintal, malhando bíceps, concentradíssimo no exercício, quando ouve um som estranho. Vozes de homens gemendo. Para de malhar e olhando por cima do muro, na casa do vizinho, vê seis moleques de pinto na mão se revezando no cu do irmão mais velho.
Num pulo só cai do outro lado. Os solados da botina velha, que herdara do pai, já caem nas costas de um deles. Supapo, socos, pontapés, caneladas pra tudo quanto é lado. Apanhou bastante, mas botou os seis pra correr, ensanguentados.
Ataque histérico do irmão. Roupa de mulher, grita com voz de homem:
- Meu! Meu cu! Eu dou pra quem eu quiser! Seu animal! Nem consegui pagar pros garotos os cem reais pelo cu comido. Quer o dinheiro? Taqui ó! Cem reais! Come meu cu que eu te dou cem reais!
Ele vira as costas e pula o muro de volta. Sente que o irmão faz o mesmo. Leva um sopapo na orelha que o pega desprevenido. Não reage. O irmão continua com o show:
- Cadê o velho? Aquele desgraçado? Eu sou biiiichaaaa! Meu cu é do mundo.
Os vizinhos ouvem e começam a sair de casa. O pai aparece. A mãe vem logo atrás.
- Velho filho de uma puta! Primogênito macho? Você queria isso? Um moralista molestador de criança igual a você? Aqui ó! Aqui ó!
Levanta a saia, abaixa a calcinha e abrindo as nádegas mostra o ânus para o pai.
- Isso aqui ó. Isso é que me faz feliz. Dar esse cu que foi você quem inaugurou pela primeira vez. Arrombou. Lembra? Lembra? Sou bicha mesmo, bicha bichinha do papai...
O pai, tremendo, sai nervoso com a mão fechada em sua direção. Soco pronto. O mais novo interrompe. Toma frente. Parte em fúria pra cima do mais velho:
- Não fala assim seu verme aidético. Respeita o pai !
E se atracam. O mais velho toma força e enche o mais novo de pancadas e unhadas. O pai gritando:
- Se apanhar da bicha eu juro que eu te boto pra fora de casa hoje, seu maricas. Mete a porrada! Mete a porrada!
O mais novo, apesar da resistência física e dos músculos rijos, sente que está em desvantagem. Afinal, são oito anos de diferença. E a bicha, bicho da noite, era boa de porrada. Antes de apanhar mais, no desespero, o mais novo dá-lhe uma dentada no nariz e cospe inteiro o pedaço de carne no chão. O mais velho berrando se levanta e, mão no meio do rosto, sai gritando e chorando, agora com voz de mulher.
-Acabou com o meu rosto! Acabou com o meu rosto! Seu monstro! Um dia você vai me mostrar se você é homem mesmo! Você tá fudido seu desgraçado ! Eu juro que vou foder com a sua vida! Quer apostar? Por esses cem reais que estão aqui no meu bolso!
E sai aos gritos com a camisa empapada de sangue esguichando pelo buraco onde antes era o nariz.
O pai olha pro mais novo caído no chão e dá-lhe um pisão com o coturno bem no meio das pernas.
- Apanhar de uma bicha? Seu merda! Cadê seus culhões? Vai virar pederasta também? Você não merece os coturnos marrons da Brigada, aquilo lá é pra macho!
Quando se dão conta, a mãe está deitada no chão em espasmos. Mão no peito. Levam-na às pressas pro hospital. Enfarto. Dois meses de internação. Não agüenta e morre lá mesmo.
Velório, cemitério, enterro, hino nacional.
Os dois voltam sozinhos pra casa.
Semanas depois, acabam reconciliando-se. Lêem juntos alguns livros velhos do pai. Reatam a amizade, o respeito e a confiança.
Finalmente chega o dia. O pai solitário no casarão, despede-se do filho no primeiro dia da vida militar.
Meses se passam. Vida dura. Mas não tão dura pra ele, já acostumado ao regime preparatório que o pai lhe impusera. Incorporou-se, finalmente à Brigada de Infantaria Paraquedista em março de 1999. Cumpriu com sucesso todas as etapas até chegar ao salto e depois ao curso de sobrevivência na selva.
Em julho, finalmente, recebe o famoso boot marrom, marca registrada dos pára-quedistas do Exército, e se desfaz do tão mal falado "pé preto" (o coturno preto que usou até esse dia).
Adorava usar os coturnos marrons. Os dele eram sempre os mais polidos de todo o regimento. Fez amizades na Brigada. Alguns dos freqüentadores da sala de ginásica avisam-no de umas reuniões de leitura de uns livros do Plínio Salgado. Ele se lembra do nome. Manda uma carta ao pai contando sobre as reuniões e das novas amizades e recebe um envelope, com uma carta-resposta debulhando orgulho, contendo um antigo exemplar de um livro dedicatoriado pelo próprio Plínio. Ele, tirando onda, mostra pra geral.
A galera passa a respeitá-lo ainda mais. Descobrem que o seu pai fora partícipe importante no antigo movimento aqui no Rio. Formam uma espécie de gangue interna na Brigada que tinha o respeito de quase todos da Vila Militar.
Nas horas vagas, por idéia e comando dele, a diversão era barbarizar com os recrutas que chegavam. Mas não qualquer um. Detonavam principalmente com os afeminados. E ordenou aos companheiros e asseclas da gangue:
- Qualquer um recruta que vocês perceberem sinal de bichice enrustida, vocês me avisem. Vamos fazer uma lista com nomes e números das camas em que dormem.
Poucos não eram os recrutas que entravam manifestando trejeitos gays. Melhor dizendo: não necessitava que fossem ostensivamente afeminados para que fossem postos na lista negra. Bastava mostrar fraquejo ou moleza durante os exercícios que o cara tava marcado. E o treinamento, como o pai bem dissera, era pedreira pura.
“Coisa pra macho”, ele repetia as frases do pai ecoadas na cabeça.
O método era bem engendrado para que os oficiais não percebessem o trote: esperavam o horário noturno e iam à noite nos dormitórios para as camas dos previamente escolhidos, enquanto estavam dormindo, para dar-lhes o tal corretivo. Ele tomando frente e coordenando, mandava que pegassem o tal reco-bicha de surpresa: no meio do sono, abafavam-lhe imediatamente a boca, enrolavam-no no próprio colchonete e o levavam-no para o banheiro. Ali, dezenas de toalhas molhadas e enroladas em sabonetes desciam violentamente no rosto, nas costas e nas pernas. Isso enquanto sussuravam “Bicha! Molenga! Fraco! Você nunca vai ser um Botina Marrom”. Por fim, urinavam em cima e ordenavam-no que tornasse-se homem, já que era uma vergonha para a corporação.
Esse era o ritual que se sucedeu dezenas de vezes.
Todos ali tinham respeito e medo dele. Por ser o líder, o articulador intelectual do movimento e principalmente por ser o mais marombado. Até alguns oficiais, por mais incrível que possa parecer, contrariando as regras de hierarquia, mostravam receio em encará-lo.
O coronel, amigo do seu pai, tinha-no como um dos melhores da equipe. Gostava do seu espírito de liderança e , de certa forma, compactuava com os ideais pregados nas reuniões integralistas de que tinha tomado ciência.
Meses se passaram, a rotina continuava e de repente vem a notícia arrasadora: crise financeira nas Forças Armadas. Baixa geral. Ele acabou indo junto.
Nem a influência do pai com as altas patentes foi o suficiente para mantê-lo. Sai da vida militar. E o que realmente lhe doeu foi ter que deixar as botinas marrons.
Fora dali, acaba arrumando um emprego em Belford Roxo como vigilante de uma fábrica, e passa dois anos nessa labuta. Salário de fome que dava pra pagar só o aluguel da quitinete e das cervas nos fins de semana. O bom era que o trampo exigia que ele usasse coturnos. Pretos. Mas ele ficava engraxando-os com graxa marrom durante horas. A cor quase pegava. Mas o simples ato de engraxar era uma terapia pra ele, adorava aquilo.
Num dos bares que frequentava, acabou encontrando um dos antigos amigos da Brigada, ainda na ativa. Papo vai e vem, recebe um convite pra ir num outro bar, lá em Niterói, onde a galera se encontrava. Vai, e lá vê todos os antigos amigos. Entre abraços e lembranças, comentam com ele sobre a continuidade do movimento iniciado. Ele entusiasma-se na hora. Passa a manter regulares encontros com a rapaziada. Adota a indumentária: cabeça raspada com máquina zero, camisa branca, tatoos, suspensórios, jeans surrado e – maravilhosamente - os coturnos. Lindos coturnos marrons espelhadamente polidos.
A galera sempre se juntava nesse bar quando estavam fora dos horários dos trampos. Curtiam ali sobre assuntos que envolviam a parte ideológica que os unia: Integralismo e Movimento Oi!. E escutavam bandas que bradavam temas que lhes eram afins. Ali, sempre ali, no mesmo bar.
Mas o trato principal era a treta: e o prato era preto, punk, paraíba e principalmente pederasta que pretendesse passar em frente ao botequim-sede.
Como quando ocorreu na vez em que ele, lá no bar, sentado numa das mesas perto da janela avistou um grupo de travestis passando na calçada oposta. Levantou-se rapidamente, ao pulo, sem nem ao menos avisar aos amigos de mesa, e correu para a direção dos travecos. Encurralou os três perto de um portão. Sabidos e velhacos que eram do que estava por vir, ao olharem seu visual, as bichas aos berros esganiçados, tomam ares de homem e encaram-no. O mais alto tira a sandália de salto e de dentro saca uma navalha, dessas caseiras. Antes de conseguir empunhá-la, recebe dele um chute que estala alto bem no meio do rosto, entre o nariz e o olho esquerdo. Os outros dois começam a estapeá-lo. Em golpes furiosos de muay tay ele distribui para a dupla cotoveladas e caneladas certeiras na cabeça, no rim, no estômago e nas esguias pernas andróginas. Todos no bar saem e em solidariedade ao amigo, que sozinho lutava com três, ameaçam ajudá-lo.
Ele que abrindo os braços, sem olhar pra trás grita:
- Podexá porra, que eu detono essas bichas sozinho! Ninguém entra! Ninguém entra!
Faz-se uma gigantesca roda de skinheads em volta dele e dos seus adversários. Copos de cerveja nas mãos, começam a gritar e a urrar.
Ao pontapetear o joelho da bicha mais baixa que cai de quatro no chão, ele aproveita-se dessa posição em que podia escolher onde golpear e dá-lhe um pisão bem no meio das costelas. Ouve-se um barulho seco de ossos se quebrando. A mais alta, levantando-se ao se recuperar do chute levado no rosto - já em pasta de sangue - leva um golpe espalmado bem no meio da nuca e cai novamente, dessa vez estatelado de bruços. Ele olha pra ela, toma distância e chuta-lhe a cabeça com a botina de biqueira-de-aço com tanta força, que sente-lhe afundar parte do calçado no crânio. Todos os demais skins berram o seu nome, como ao de um herói. A sucessão de desferimentos de golpes continua mesmo com os três caídos no chão. Os socos sempre no rosto punha-lhes as maçãs e os lábios pobremente siliconados em carne-viva. Dos chutes e pisões podia-se, pelo ruído, distinguir quando acertavam em ossos ou em carnes e gorduras. Estes, sempre sons mais abafados e secos, aqueles os de galhos se quebrando. Exceto quando os pontapés pegavam nos finos dedos das mãos, já que fazia um claro barulho agudo de carne e tendões se rompendo. Não dava pra distinguir, a partir de então, se ainda estavam vivos ou mortos. A sequência de porradas é interrompida por um de seus amigos que, tentando acalmar-lhe, pondera no seu ouvido que parasse antes que os três morressem ali. O que seria o fechamento do bar na certa. Ele ainda resfolegando de raiva e adrenalina consegue ouvir o conselho do amigo e concorda. Mas não sem antes ir em direção à bicha que estava estatelada de costas no chão, de saia e de pernas abertas e pular com os dois pés do coturno nos seus testículos. Ao verem aquilo, todos que estão em volta, como se sentissem na própria pele a horrorosa dor, põem as mãos nos próprios sacos às gargalhadas: “Huuuuurrrrrrrrrr!! Essa foi foda!” . E conduzem-no de volta ao bar levado pelos ombros, de onde do bico de seus coturnos marrons ainda pingava sangue fresco.
Dia após dia, ou melhor, sempre após o expediente, estavam todos lá religiosamente tomando, às moedas contadas, litros de suas cervejas vagabundas com gosto de sabão em pó.
Até que num fatídico dia, estava ele no bar lotado - dia de homenagem à morte de Plínio Salgado – onde encontravam-se dezenas de carecas de toda a região. Copos de cerveja para o alto e urros. Festa e agitação ao som de uma banda que tocava num minúsculo palco no canto do bar. No meio da mistura ensurdecedora de ruídos, ele, entre o som da banda, a gritaria e farra geral de gritos de Oi! e Anauê!, ouve uma voz estranhamente feminina gritar alto o seu nome. Ouve novamente. Grita seu nome e sobrenome. Acha estranho aquilo. Só tinha homem no bar lotado. Uma mulher chamando-o? Percorre todo o bar por dentro e não vê mulher nenhuma. Desiste de procurar. Vai pro lado de fora do bar e senta-se numa cadeira vazia onde estão todos os seus chegados. Toma um gole grande de cerveja levantando a cabeça pra cima. Ao abaixá-la, vê uma figura esguia, estranha, vindo rapidamente em sua direção, que grita seu nome novamente. Ele fica parado, sem entender nada e, de repente, assusta-se com o que vê saindo da escuridão da rua. A aberração pára e olha dentro dos seus olhos. Todos na mesa e no bar prestam atenção no monstruoso ser. Ele reconhece. Fica paralizado. Em estado de choque. A banda pára de tocar. O bar fica em silêncio. O travesti, magérrimo, cheio de manchas, maltrapilho, rosto deformado, no lugar do nariz um buraco pustulento e infeccionado, posiciona-se bem na sua frente e, sem que ele possa esboçar reação, segura-lhe com força na nuca dá-lhe um beijo babado na boca. Levanta-se e diz pra que todos possam ouvir:
- Oi meu amor! Taqui os cem reais daquele dia.
- Vamos lá garoto. Tem que estar preparado se quiser entrar pra carreira militar, sem frescuras, corpo rijo, resistência, disciplina. Vamos lá, vamos lá...
Estava determinado a entrar para a prestigiada Brigada Pára-quedista na Vila Militar. Morava ali perto, num bairro classe média-baixa da Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro. Passou a infância vendo os paraquedistas, aos montes, flutuando no céu.
O pai, dando mais ordens, aos berros:
- Garoto. Saiba que será pedreira entrar e resistir durante o tempo que ficar nas Organizações Militares da Brigada de Infantaria Pára-quedista, e terá que lutar duro pra conquistar os respeitados e cobiçados coturnos de couro marrons!
Ele obedecia as ordens do pai e malhava duro pra desenvolver além do normal os ainda adolescentes músculos em crescimento. E conseguiu. Arduamente. Diariamente. Aulas particulares de muay-tay, grego-romana, boxe. O pai sempre ao lado gritando: “Disciplina e força”. “Disciplina e força”.
Militar reformado, nacionalista convicto e ex-integralista, tinha nele, o filho mais novo, a esperança de continuar o legado ideológico e militar.
O mais velho, depois da surra dias antes levada pelo pai, poucas vezes aparecia em casa. Nunca estava com a família.
Até que em um almoço de domingo ele aparece de cabelo comprido, cílios postiços, saia e rosto pintado. Com namorado a tira-colo. O pai, ainda um colosso de músculos, apesar da idade, deu a surra ali mesmo e escurraçou os dois travestidos. “Verme imundo”. “ Nunca mais apareça nessa casa”. “Aqui é casa de família que não entra pederasta!”
Foi a última vez que viu o irmão. Última não, penúltima. A última foi três meses antes do exame pro ingresso militar. Estava ele lá na academia montada pelo pai no quintal, malhando bíceps, concentradíssimo no exercício, quando ouve um som estranho. Vozes de homens gemendo. Para de malhar e olhando por cima do muro, na casa do vizinho, vê seis moleques de pinto na mão se revezando no cu do irmão mais velho.
Num pulo só cai do outro lado. Os solados da botina velha, que herdara do pai, já caem nas costas de um deles. Supapo, socos, pontapés, caneladas pra tudo quanto é lado. Apanhou bastante, mas botou os seis pra correr, ensanguentados.
Ataque histérico do irmão. Roupa de mulher, grita com voz de homem:
- Meu! Meu cu! Eu dou pra quem eu quiser! Seu animal! Nem consegui pagar pros garotos os cem reais pelo cu comido. Quer o dinheiro? Taqui ó! Cem reais! Come meu cu que eu te dou cem reais!
Ele vira as costas e pula o muro de volta. Sente que o irmão faz o mesmo. Leva um sopapo na orelha que o pega desprevenido. Não reage. O irmão continua com o show:
- Cadê o velho? Aquele desgraçado? Eu sou biiiichaaaa! Meu cu é do mundo.
Os vizinhos ouvem e começam a sair de casa. O pai aparece. A mãe vem logo atrás.
- Velho filho de uma puta! Primogênito macho? Você queria isso? Um moralista molestador de criança igual a você? Aqui ó! Aqui ó!
Levanta a saia, abaixa a calcinha e abrindo as nádegas mostra o ânus para o pai.
- Isso aqui ó. Isso é que me faz feliz. Dar esse cu que foi você quem inaugurou pela primeira vez. Arrombou. Lembra? Lembra? Sou bicha mesmo, bicha bichinha do papai...
O pai, tremendo, sai nervoso com a mão fechada em sua direção. Soco pronto. O mais novo interrompe. Toma frente. Parte em fúria pra cima do mais velho:
- Não fala assim seu verme aidético. Respeita o pai !
E se atracam. O mais velho toma força e enche o mais novo de pancadas e unhadas. O pai gritando:
- Se apanhar da bicha eu juro que eu te boto pra fora de casa hoje, seu maricas. Mete a porrada! Mete a porrada!
O mais novo, apesar da resistência física e dos músculos rijos, sente que está em desvantagem. Afinal, são oito anos de diferença. E a bicha, bicho da noite, era boa de porrada. Antes de apanhar mais, no desespero, o mais novo dá-lhe uma dentada no nariz e cospe inteiro o pedaço de carne no chão. O mais velho berrando se levanta e, mão no meio do rosto, sai gritando e chorando, agora com voz de mulher.
-Acabou com o meu rosto! Acabou com o meu rosto! Seu monstro! Um dia você vai me mostrar se você é homem mesmo! Você tá fudido seu desgraçado ! Eu juro que vou foder com a sua vida! Quer apostar? Por esses cem reais que estão aqui no meu bolso!
E sai aos gritos com a camisa empapada de sangue esguichando pelo buraco onde antes era o nariz.
O pai olha pro mais novo caído no chão e dá-lhe um pisão com o coturno bem no meio das pernas.
- Apanhar de uma bicha? Seu merda! Cadê seus culhões? Vai virar pederasta também? Você não merece os coturnos marrons da Brigada, aquilo lá é pra macho!
Quando se dão conta, a mãe está deitada no chão em espasmos. Mão no peito. Levam-na às pressas pro hospital. Enfarto. Dois meses de internação. Não agüenta e morre lá mesmo.
Velório, cemitério, enterro, hino nacional.
Os dois voltam sozinhos pra casa.
Semanas depois, acabam reconciliando-se. Lêem juntos alguns livros velhos do pai. Reatam a amizade, o respeito e a confiança.
Finalmente chega o dia. O pai solitário no casarão, despede-se do filho no primeiro dia da vida militar.
Meses se passam. Vida dura. Mas não tão dura pra ele, já acostumado ao regime preparatório que o pai lhe impusera. Incorporou-se, finalmente à Brigada de Infantaria Paraquedista em março de 1999. Cumpriu com sucesso todas as etapas até chegar ao salto e depois ao curso de sobrevivência na selva.
Em julho, finalmente, recebe o famoso boot marrom, marca registrada dos pára-quedistas do Exército, e se desfaz do tão mal falado "pé preto" (o coturno preto que usou até esse dia).
Adorava usar os coturnos marrons. Os dele eram sempre os mais polidos de todo o regimento. Fez amizades na Brigada. Alguns dos freqüentadores da sala de ginásica avisam-no de umas reuniões de leitura de uns livros do Plínio Salgado. Ele se lembra do nome. Manda uma carta ao pai contando sobre as reuniões e das novas amizades e recebe um envelope, com uma carta-resposta debulhando orgulho, contendo um antigo exemplar de um livro dedicatoriado pelo próprio Plínio. Ele, tirando onda, mostra pra geral.
A galera passa a respeitá-lo ainda mais. Descobrem que o seu pai fora partícipe importante no antigo movimento aqui no Rio. Formam uma espécie de gangue interna na Brigada que tinha o respeito de quase todos da Vila Militar.
Nas horas vagas, por idéia e comando dele, a diversão era barbarizar com os recrutas que chegavam. Mas não qualquer um. Detonavam principalmente com os afeminados. E ordenou aos companheiros e asseclas da gangue:
- Qualquer um recruta que vocês perceberem sinal de bichice enrustida, vocês me avisem. Vamos fazer uma lista com nomes e números das camas em que dormem.
Poucos não eram os recrutas que entravam manifestando trejeitos gays. Melhor dizendo: não necessitava que fossem ostensivamente afeminados para que fossem postos na lista negra. Bastava mostrar fraquejo ou moleza durante os exercícios que o cara tava marcado. E o treinamento, como o pai bem dissera, era pedreira pura.
“Coisa pra macho”, ele repetia as frases do pai ecoadas na cabeça.
O método era bem engendrado para que os oficiais não percebessem o trote: esperavam o horário noturno e iam à noite nos dormitórios para as camas dos previamente escolhidos, enquanto estavam dormindo, para dar-lhes o tal corretivo. Ele tomando frente e coordenando, mandava que pegassem o tal reco-bicha de surpresa: no meio do sono, abafavam-lhe imediatamente a boca, enrolavam-no no próprio colchonete e o levavam-no para o banheiro. Ali, dezenas de toalhas molhadas e enroladas em sabonetes desciam violentamente no rosto, nas costas e nas pernas. Isso enquanto sussuravam “Bicha! Molenga! Fraco! Você nunca vai ser um Botina Marrom”. Por fim, urinavam em cima e ordenavam-no que tornasse-se homem, já que era uma vergonha para a corporação.
Esse era o ritual que se sucedeu dezenas de vezes.
Todos ali tinham respeito e medo dele. Por ser o líder, o articulador intelectual do movimento e principalmente por ser o mais marombado. Até alguns oficiais, por mais incrível que possa parecer, contrariando as regras de hierarquia, mostravam receio em encará-lo.
O coronel, amigo do seu pai, tinha-no como um dos melhores da equipe. Gostava do seu espírito de liderança e , de certa forma, compactuava com os ideais pregados nas reuniões integralistas de que tinha tomado ciência.
Meses se passaram, a rotina continuava e de repente vem a notícia arrasadora: crise financeira nas Forças Armadas. Baixa geral. Ele acabou indo junto.
Nem a influência do pai com as altas patentes foi o suficiente para mantê-lo. Sai da vida militar. E o que realmente lhe doeu foi ter que deixar as botinas marrons.
Fora dali, acaba arrumando um emprego em Belford Roxo como vigilante de uma fábrica, e passa dois anos nessa labuta. Salário de fome que dava pra pagar só o aluguel da quitinete e das cervas nos fins de semana. O bom era que o trampo exigia que ele usasse coturnos. Pretos. Mas ele ficava engraxando-os com graxa marrom durante horas. A cor quase pegava. Mas o simples ato de engraxar era uma terapia pra ele, adorava aquilo.
Num dos bares que frequentava, acabou encontrando um dos antigos amigos da Brigada, ainda na ativa. Papo vai e vem, recebe um convite pra ir num outro bar, lá em Niterói, onde a galera se encontrava. Vai, e lá vê todos os antigos amigos. Entre abraços e lembranças, comentam com ele sobre a continuidade do movimento iniciado. Ele entusiasma-se na hora. Passa a manter regulares encontros com a rapaziada. Adota a indumentária: cabeça raspada com máquina zero, camisa branca, tatoos, suspensórios, jeans surrado e – maravilhosamente - os coturnos. Lindos coturnos marrons espelhadamente polidos.
A galera sempre se juntava nesse bar quando estavam fora dos horários dos trampos. Curtiam ali sobre assuntos que envolviam a parte ideológica que os unia: Integralismo e Movimento Oi!. E escutavam bandas que bradavam temas que lhes eram afins. Ali, sempre ali, no mesmo bar.
Mas o trato principal era a treta: e o prato era preto, punk, paraíba e principalmente pederasta que pretendesse passar em frente ao botequim-sede.
Como quando ocorreu na vez em que ele, lá no bar, sentado numa das mesas perto da janela avistou um grupo de travestis passando na calçada oposta. Levantou-se rapidamente, ao pulo, sem nem ao menos avisar aos amigos de mesa, e correu para a direção dos travecos. Encurralou os três perto de um portão. Sabidos e velhacos que eram do que estava por vir, ao olharem seu visual, as bichas aos berros esganiçados, tomam ares de homem e encaram-no. O mais alto tira a sandália de salto e de dentro saca uma navalha, dessas caseiras. Antes de conseguir empunhá-la, recebe dele um chute que estala alto bem no meio do rosto, entre o nariz e o olho esquerdo. Os outros dois começam a estapeá-lo. Em golpes furiosos de muay tay ele distribui para a dupla cotoveladas e caneladas certeiras na cabeça, no rim, no estômago e nas esguias pernas andróginas. Todos no bar saem e em solidariedade ao amigo, que sozinho lutava com três, ameaçam ajudá-lo.
Ele que abrindo os braços, sem olhar pra trás grita:
- Podexá porra, que eu detono essas bichas sozinho! Ninguém entra! Ninguém entra!
Faz-se uma gigantesca roda de skinheads em volta dele e dos seus adversários. Copos de cerveja nas mãos, começam a gritar e a urrar.
Ao pontapetear o joelho da bicha mais baixa que cai de quatro no chão, ele aproveita-se dessa posição em que podia escolher onde golpear e dá-lhe um pisão bem no meio das costelas. Ouve-se um barulho seco de ossos se quebrando. A mais alta, levantando-se ao se recuperar do chute levado no rosto - já em pasta de sangue - leva um golpe espalmado bem no meio da nuca e cai novamente, dessa vez estatelado de bruços. Ele olha pra ela, toma distância e chuta-lhe a cabeça com a botina de biqueira-de-aço com tanta força, que sente-lhe afundar parte do calçado no crânio. Todos os demais skins berram o seu nome, como ao de um herói. A sucessão de desferimentos de golpes continua mesmo com os três caídos no chão. Os socos sempre no rosto punha-lhes as maçãs e os lábios pobremente siliconados em carne-viva. Dos chutes e pisões podia-se, pelo ruído, distinguir quando acertavam em ossos ou em carnes e gorduras. Estes, sempre sons mais abafados e secos, aqueles os de galhos se quebrando. Exceto quando os pontapés pegavam nos finos dedos das mãos, já que fazia um claro barulho agudo de carne e tendões se rompendo. Não dava pra distinguir, a partir de então, se ainda estavam vivos ou mortos. A sequência de porradas é interrompida por um de seus amigos que, tentando acalmar-lhe, pondera no seu ouvido que parasse antes que os três morressem ali. O que seria o fechamento do bar na certa. Ele ainda resfolegando de raiva e adrenalina consegue ouvir o conselho do amigo e concorda. Mas não sem antes ir em direção à bicha que estava estatelada de costas no chão, de saia e de pernas abertas e pular com os dois pés do coturno nos seus testículos. Ao verem aquilo, todos que estão em volta, como se sentissem na própria pele a horrorosa dor, põem as mãos nos próprios sacos às gargalhadas: “Huuuuurrrrrrrrrr!! Essa foi foda!” . E conduzem-no de volta ao bar levado pelos ombros, de onde do bico de seus coturnos marrons ainda pingava sangue fresco.
Dia após dia, ou melhor, sempre após o expediente, estavam todos lá religiosamente tomando, às moedas contadas, litros de suas cervejas vagabundas com gosto de sabão em pó.
Até que num fatídico dia, estava ele no bar lotado - dia de homenagem à morte de Plínio Salgado – onde encontravam-se dezenas de carecas de toda a região. Copos de cerveja para o alto e urros. Festa e agitação ao som de uma banda que tocava num minúsculo palco no canto do bar. No meio da mistura ensurdecedora de ruídos, ele, entre o som da banda, a gritaria e farra geral de gritos de Oi! e Anauê!, ouve uma voz estranhamente feminina gritar alto o seu nome. Ouve novamente. Grita seu nome e sobrenome. Acha estranho aquilo. Só tinha homem no bar lotado. Uma mulher chamando-o? Percorre todo o bar por dentro e não vê mulher nenhuma. Desiste de procurar. Vai pro lado de fora do bar e senta-se numa cadeira vazia onde estão todos os seus chegados. Toma um gole grande de cerveja levantando a cabeça pra cima. Ao abaixá-la, vê uma figura esguia, estranha, vindo rapidamente em sua direção, que grita seu nome novamente. Ele fica parado, sem entender nada e, de repente, assusta-se com o que vê saindo da escuridão da rua. A aberração pára e olha dentro dos seus olhos. Todos na mesa e no bar prestam atenção no monstruoso ser. Ele reconhece. Fica paralizado. Em estado de choque. A banda pára de tocar. O bar fica em silêncio. O travesti, magérrimo, cheio de manchas, maltrapilho, rosto deformado, no lugar do nariz um buraco pustulento e infeccionado, posiciona-se bem na sua frente e, sem que ele possa esboçar reação, segura-lhe com força na nuca dá-lhe um beijo babado na boca. Levanta-se e diz pra que todos possam ouvir:
- Oi meu amor! Taqui os cem reais daquele dia.
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