quinta-feira, 16 de setembro de 2010

NÃO ROGAI


- O senhor aceita Jesus, senhor Lázaro? Nós estamos orando para que o senhor melhore senhor Lázaro. Senhor Lázaro, ontem lá na Igreja foi realizada a Concentração de Fé e Milagres, ministrada pelo pastor Getúlio Silva, atual responsável pelo trabalho evangelístico da nossa igreja.. Ele baseou a pregação em Tiago 5.14: “Está alguém entre voz doente?”. Senhor Lázaro, durante a concentração foram feitas várias orações em favor de todos os que estavam enfermos, sofrendo com dores e vários outros problemas como o senhor. Depois do clamor, muitas pessoas testemunharam os milagres que aconteceram em suas vidas. Senhor Lázaro, tenha fé. Estaremos orando pelo senhor.
Lázaro não agüentava mais aquilo. Era ateu, e não agüentava mais aquilo. Ateu não, considerava-se meio ateu porque não acreditava em Deus, mas acreditava na fé dos que acreditavam. Sua avó Maria Lucia era católica fervorosa; Fabiana, sua mãe, era kardecista; suas irmãs eram evangélicas e seu irmão mais velho era pastor da Assembléia de Deus. Respeitava aquilo que eles chamavam de fé, que eles tinham, mas que ele nunca havia pensado na possibilidade de ter. Respeitava, mas cada um na sua né? Sem encher o saco dele com fanatismo. E os parentes dele até entendiam isso, porque até antes de ele estar ali, enfermo, deitado numa cama de hospital, eles respeitavam, não o aporrinhavam com essa chatice de religião, mas nessa situação crítica que ele estava, eles se achavam no pleno direito de encher a paciência dele com aquela ladainha toda.
- Ó Deus que santificastes este óleo, concedendo a todos os que são ungidos e por ele recebem a santificação, como quando ungistes os reis, sacerdotes e profetas, assim concedei que ele possa dar fortaleza a todos os que dele se valem e saúde a todos o que o usam. Suplico que abençoe e cure o Lázaro de todo esse mal.
Lázaro já fora um ateu militante, radical. Anti-religioso fanático, chegou ao ponto de manter um site na internet que tratava do assunto. Nessa época considerava que a ciência poderia ser usada na produção de coisas ruins como a bomba atômica, mas por si mesma não levava a ações malignas, e argumentava que, entretanto, fazer coisas horríveis era uma parte lógica do processo de acreditar em Deus. Bradava furioso, aos quatro ventos, que os dezenove homens que perpetraram os ataques de 11 de setembro de 2001 talvez não fossem naturalmente malignos, mas eram profundamente religiosos. E Lázaro dizia que esses terroristas achavam que o que estavam fazendo era correto segundo o que acreditavam, chegando a essa conclusão de uma forma lógica a partir de seus textos religiosos. Considerava que para um ateu, seria impossível realizar um ato similar a partir de uma racionalização lógica. Lázaro, nessa época, chegara a perder várias amizades para defender essa tese.
- Além disso, aqueles que estão também com setenta anos, se bem que arduamente e sofridamente... Nesse caso deve ser realizado o que também o Apóstolo Tiago diz: Se, pois, alguém está enfermo, que chame o presbítero da Igreja para impor as mãos sobre ele, ungindo-o com óleo em nome do Senhor; e a oração da fé salvará o enfermo, e se ele está em pecados, esses lhe serão perdoados.
Mas, agora, Lázaro já não era tão radical. Continuava ateu, mas tolerava a religião alheia. Chegou a essa conclusão da tolerância, do respeito, no dia em que, ao despedir-se, saindo da casa de sua avó, flagrou-se num “Bença, fica com Deus vó”. E viu que tinha sido sincera essa despedida. Não que ele quisesse que ela ficasse mesmo “com Deus”, mas que ela ficasse bem, e a maneira mais adequada que encontrara para dizer isso pra sua avó fora nessa frase “Bença, fica com Deus vó”.
-Sobre o sacramento da vida, pelo qual (batismo) os sacerdotes cristãos (na ordenação), reis e profetas se tornam perfeitos; ele ilumina a escuridão (na confirmação), unge os enfermos, e por seu privado sacramento restaura os penitentes.
O “Bença, fica com Deus vó” servira como uma espécie de epifania na sua vida. Passou a se dar melhor com as outras pessoas e até consigo mesmo. Tornou-se muito mais paciente com as crenças alheias. Continuava “meio ateu” , disso ele tinha certeza. Continuava flertando as com teorias anti-religiosas de Nietzsche e permanecia participando de discussões acaloradas sobre o tema na faculdade que lecionava como professor de Biologia citando sempre Darwin, já que Lázaro era darwiniano convicto.
- Porque não somente no tempo da conversão, mas depois também, eles têm autoridade para perdoar os pecados. `Está alguém doente entre vós?` está dito - que chame os mais velhos da Igreja, e que esses orem sobre ele, ungindo-o com óleo em nome do Senhor. E a prece da fé salvará o doente, e o Senhor o levantará: e se ele cometeu pecados, esses lhe serão perdoados`
Depois do “Bença, fica com Deus vó”, Lázaro elaborara uma teoria que havia batizado de “ Não rogai Teu semântico nome em vão”. Escrevera até uma artigo no jornal da fauldade, pra surpresa de todos que sabiam de sua descrença, defendendo a necessidade inescapável de ter que usar o nome de Deus para melhor expressão em algumas situações. Recebera vários elogios do pessoal ligado à área da Lingüística da universidade. Propuseram até dissertação aproveitando o tema.
- O enfermo considerava uma calamidade mais terrível do que a própria doença...(se permitisse) que as mãos dos arianos fossem colocadas sobre sua cabeça. Este óleo... para boa graça e remissão dos pecados, para uma medicina de vida e salvação, para saúde e bem estar da alma, corpo ,espírito, para a perfeita consolidação. Rezavam sobre ele; um soprava sobre ele, outro confirmava.
A artigo “ Não rogai Teu semântico nome em vão” começava dizendo: “Regozija-se por alguém que inesperadamente consiga propiciar uma solução para a difícil situação: haveria como melhor expressar as circunstâncias mais relevantes da vida, se não proferindo o Santo nome?” E, a seguir, relacionava várias frases:
“Quando desfalecia em mim a minha alma, da dor da solidão, sem nem um irmão ao ombro, só pude pensar: “ Sozinho e Deus” ; ou a frase “Filho pecaste? Não o faça mais. Deus está vendo.”; ou “Então não dirias tu, com teus olhos rasos d`água, se acaso estiverdes a despedires do teu rebento de asas prontas para ganhar o mundo, apenas “Deus te ajude” ?”; ou ainda “E lhe responderia o filho pródigo, de coração apertado, afastando-se: “Deus te ouça”, pai.”. Entre outras frases usando o Santo Nome, como: Deus à ventura, Levar Deus para si,Vá com Deus,Deus lhe pague,Ela se dá com Deus e o mundo, Deus queira que, Graças a Deus, Deus-me-livre, Deus nos acuda, Louvado seja Deus,Ao Deus-dará,Pelo amor de Deus,Ver a Deus pelos pés,Fiquem com Deus e Meu Deus do céu.
- Por que, então, impondes as mãos e acreditais que isso tenha efeito de bênção, se acaso alguma pessoa enferma se recupera? Por que assumis que alguém possa ser purificado por vós da sujeira do demônio? Por que batizais se os pecados não podem ser remidos pelo homem? Se o batismo é seguramente a remissão de todos os pecados, que diferença faz se o sacerdote diz que esse poder é dado a eles na penitência ou no batismo? Em ambos o mistério é um`. Se alguma parte de teu corpo está sofrendo... recorda-te também das Escrituras Inspiradas: Alguém entre vós está doente? Chama o presbítero da Igreja e deixa-o orar sobre ele, ungindo-o com óleo no nome do Senhor. E a oração da fé salvará o doente, e o Senhor o soerguerá, e se ele está em pecados, esses serão perdoados`
Lázaro obtivera com esse artigo certa notoriedade no meio acadêmico e intelectual. Estava colhendo bons frutos, até o dia em que havia parado naquele leito de hospital. Sua carreira na universidade estava de vento em popa e o acidente interrompera tudo. E agora ele ali, ouvindo contrariado essa falação o tempo todo no ouvido. Não agüentava mais, não agüentava mais. Queria morrer. Gritava que queria morrer. Ungido é o caralho! Já estava começando a mudar de idéia quanto a tolerar o fanatismo alheio. Tava puto e revoltado com aquela porra toda de oração, unção, perdão, bênção, reza, o caralho a quatro. Pedia que parassem. Parem porra! Não queria ouvir aquilo. Se tivesse que morrer, que morresse. E essa falação é que tava matando ele.
- Na epístola Apóstolo Tiago... - `Se alguém entre vós está doente, chama os sacerdotes...` - não há dúvida de que o ungido deve ser interpretado ou compreendido como enfermo da fé, que pode ser ungido com o santo óleo do crisma... é uma espécie de sacramento` `Que aquele que está doente receba o Corpo e Sangue de Cristo; que humildemente e com fé peça aos presbíteros a unção abençoada, para ungir seu corpo, de modo que o que foi escrito possa lhe ser frutuoso: Está alguém entre vós enfermo? Que lhe tragam os presbíteros, que esses orem sobre ele, ungindo-o com óleo; e a prece da fé salvará o enfermo, o Senhor o reerguerá; e se estiver em pecados, esses lhes serão perdoados``Deve-se chamar um padre que, pela prece da fé e a unção do santo óleo que comunica, salvará aquele que está doente, por causa de um grande ferimento ou por uma doença.
Lázaro sentia ódio, rancor, sofrimento, angúsia, durante as orações. Pra que ele estava ouvindo aquilo? Por acaso perguntaram pra ele se ele queria ser perdoado, ser ungido, ser curado? Perguntaram pra ele se ele preferiria , por acaso, morrer a sofrer daquela maneira? Era um direito seu não ouvir aquela merda toda. Todos consideravam válido aplicar o que eles mesmos julgavam ser o melhor para Lázaro, mas ninguém pensou na possibilidade de perguntar o que ele mesmo achava melhor para si.
- Dona Fabiana, disse o pastor lendo um folheto para a mãe de Lázaro, é muito louvável que os médicos apliquem todos os recursos disponíveis para salvar vidas. Lemos na Bíblia a história do Rei Ezequias que estava gravemente enfermo e cuja morte estava determinada pelo próprio Deus. Mas diante de sua oração e suplicas, Deus lhe restaurou a saúde e acrescentou-lhe mais quinze anos de vida. A Igreja louva a Deus pelo trabalho dos médicos e todos os profissionais da área de saúde que tanto tem contribuído para minorar o sofrimento de milhões de doentes. A Igreja o considera uma benção de Deus. Temos o testemunho de muitas pessoas que estavam doentes já em fase terminal, tendo já se esgotado todos os recursos da medicina, foram completamente restaurados pela interferência direta de Deus mediante a oração dos seus servos.
Lázaro, suplicava que parassem. Estava ficando maluco ao ouvir aquilo o dia inteiro, todo dia, todas as semanas, meses. Exatamente os dois anos e sete meses em que estava em coma. Ele, apesar do coma, ouvia as pessoas e entendia tudo o que acontecia seu redor durante esse período. Estava convicto de que queria morrer. Pensou, ironicamente, que se Deus existisse mesmo, não o deixaria passar por todo esse sofrimento, ouvindo contra a sua própria vontade essa reza infernal esse tempo todo. Até quando? Não conseguia gritar para que parassem. Ouvia o que todos diziam e entendia tudo, mas não podia falar, não podia se mover, não podia fazer nada para lhes dar a entender que estava aí, que os ouvia, que preferia morrer a ouvir aquelas preces o resto dos dias que lhe restavam. Olhos fechados e corpo inerte, porque diabos não ficara sem ouvir também? Ele, desesperado, pensava que , já que ele estava supostamente inconsciente e praticamente dado como morto por todos, porque não desligavam a porra dos aparelhos? Ele suplicava por isso, mas não o ouviam. Apenas rezavam, e rezavam, e rezavam...

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