quinta-feira, 16 de setembro de 2010

MENINA DOS OLHOS

Os adultos, circunspectos e concentrados nos seus próprios assuntos evitavam olhar para a menina. Evitavam chegar perto dela para que os seus sussurros não chegavam até ela.

Quietinha, lá, no canto da poltrona, havia duas horas, a menina sussurrava também os seus segredos com a sua boneca. Ela e a boneca. Velhinha, a boneca, apenas tufos de cabelos ainda restavam na sua cabeça mole de borracha, as pernas, que sempre se soltavam, reencaixadas às pressas e sem paciência pela mãe, tinha os pés trocados, boneca-curupira: a perna esquerda encaixada no lado direito e a direita no esquerdo. Encardido, puído, o mesmo vestidinho que nunca fora trocado desde que a menina a herdara da irmazinha mais velha. As bracinhos não tinham mais articulação, bracinhos inertes de boneca velha. Fora daquelas bonecas que fecham os olhos quando postas na horizontal. Abertos, em pé, fechados deitada. Não, não era mais, pois,quando deitada, somente um dos olhinhos verdes de vidro, o esquerdo, se fechava, o outro permanecia aberto. Nem cílios o olho estragado tinha. Boneca-aberração. A menina não via defeitos na boneca, sua única amiga e confidente.Trocavam os mais íntimos segredos. Amigas, a menina e a boneca no canto da poltrona conversavam baixinho, uma sussurrando segredos no ouvido da outra. A menina deitava e levantava a boneca. Com o movimento, o olho defeituoso, verde, sem cílios, permanecia aberto. Ao término de cada história contada a menina eufórica a erguia e a velha-boneca-caolha-dos-pés-invertidos piscava o olhinho direito para a menina:

“Fica entre nós esse segredinho,einh?”

-Conta! Conta outro segredo! – disse a menina baixinho no ouvido da boneca.

E ouvia, com riqueza de detalhes, os segredinhos queria ouvir. A boneca sabia de muitos segredos. Contava tudo que a menina não sabia. Tirava o ouvidinho da boca da boneca, cabeça pra cima e gargalhava. Baixinho, pra não atrapalhar o sussurro dos adultos. Não continha seu fascínio pelos segredos. Levantava o queixo rindo. Rindo à beça da novo segredo da boneca. E erguia e deitava a boneca. E uma história trás da outra. Abraçava abraço apertado na boneca. Amassava até a cabeça da boneca o abraço abração da menina, tamanha a pressão do “Upaaa!” O olho direito dava meio salto pra fora da órbita, mas a cabeça voltava ao normal. E a boneca piscava pra menina:

“Fica entre nós esse segredinho,einh?”

As duas sozinhas,no canto da poltrona.

“Amigas, amigas, amigas pra seeeempre!Né?”

Uma piscada como resposta.

Havia uma consternação entre os adultos. Os adultos desviavam o olhar da menina na poltrona. Dor de adulto ver a menina assim, sentada há tanto tempo, sem saber de nada. Mas não havia pra onde olhar. Doía ver a menina sozinha na poltrona, lá no canto, conversando com aquela boneca velha. Doía ver no meio da sala o caixãozinho. O caixãozinho da irmã mais velha da menina. Aquela tarde tortuosa pros adultos que em grupos, roupas pretas, fechavam-se em círculos uns olhando para os outros evitando olhar para mãe.

Os adultos curvados com seus ternos pretos pareciam corvos. Medo de ver a dor.

A mãe sentada ao lado do caixãozinho miando a dor de mãe. Os adultos curvados em grupos olhavam só para si. Medo de ver a dor doída. Medo-dó. Dó de ver os olhos abertos da menina morta. Medo de ver a mãe olhando com os olhos mais tristes do mundo a menina morta de olhos abertos no caixão.

Os adultos corvos tinham mais medo de olhar para a menina na poltrona com a boneca. Medo grande. Medo-dó. Viram que a menina, isolada na poltrona com a sua boneca caolha, ainda não sabia da irmã morta no caixão.

O flash do fotógrafo despertou alguns corvos. O clarão iluminou toda a sala. Todos olharam para o caixão com a menina morta de olhos abertos. Menos a menina com a boneca.

A mãe levantou-se da beira do caixão e dirigiu –se para o fotógrafo:

-Tirou a foto?

Hábito do lugar tirar foto de criança morta no caixãozinho. Hábito do lugar: as fotos de crianças mortas sempre de olhinhos abertos. Pra todos verem depois o anjinho-morto na foto, com os olhos abertos. Como que vivo. A menininha deitada no caixãozinho, bracinhos cruzados, lacinho na cabeça, vestidinho branco, olhos abertos.

A mãe esperava só por isso. Pela foto. Levantou-se, foi em direção à poltrona, unhas no braço da menina.

-Vamos!

Os corvos olharam por cima dos ombros curvados a menina agarrada com a boneca,suplicando pra mãe:

-Deixa mãe! Deixa a boneca contar mais um segredo!

A mãe puxou a menina pelo braço atravessando a sala e os corvos viram as lágrimas caírem das grandes pupilas brancas da menina agarrada com a boneca,que, balançando na mão da menina, ainda piscou o olho esquerdo para a menina de olhos abertos no caixão.

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