quinta-feira, 16 de setembro de 2010

PRETÉRITO MAIS-QUE-IMPERFEITO


Vivera durante anos com aquilo. Não agüentava mais. Naquele minúsculo, fedorento e calorento escritório na Rua Uruguaiana, Centro do Rio, convivera com as mais sórdidas histórias. Durante o verão era pior: o terno claustrofobizava e abafava mais ainda o ambiente com cheiro de mofo. Os clientes eram muitos, já que ele supunha que era um dos poucos que se dispuseram a trabalhar nesse ramo. Dava pra pagar as contas, mas decidira que ia fechar o escritório. Serviço imundo, ele pensava. Os clientes, que ele considerava “sanguessugas asquerosos”, vinham em sua procura desesperados em busca de salvação. Na mesa, as dezenas de guimbas de cigarro no cinzeiro testemunhavam sua quase insanidade ao conviver com aquele mundo asqueroso. Ao lado do cinzeiro, espalhadas, dezenas de folhas com os relatos, todos catalogados e numerados. Ele, entre um gole de uísque e uma baforada de cigarro, começa a relê-los. Pega o primeiro:
“ Cheirava muito...cheirava até vinte gramas de cocaína por dia. Ficava alucinado quando não tinha pó por perto. Quando não tinha dinheiro pra comprar. Sem dinheiro pra manter o vício, cheguei ao ponto de trocar a minha noiva por quatro carreiras de pó. O traficante lá no quarto transando com a minha garota, gritando palavras ofensivas pra ela, enquanto eu cheirava na sala do seu barraco. Fui ao fundo do poço por causa do vício”.
Acende outro cigarro, abre a garrafa de Underberg e dá um gole comprido no gargalo mesmo. Ameaça dar uma golfada. Engole mais fumaça de Derby que segura o vômito. Pega o isqueiro e segurando a folha por uma das pontas pôe-lhe fogo. Tateia e acha a segunda folha:
“ No assalto, a mulher não queria largar a bolsa. O sinal quase pra abrir, eu encima da moto, desesperado, pedindo pra ela largar e ela não largava, dizia pra mim que o pagamento tava lá dentro, que não ia deixar um bandido levar todo o orçamento do mês. Estava decidida a não largá-la, mesmo com o meu revólver apontado pro seu rosto, foi quando o sinal abriu e eu disparei no meio da testa. Acelerei a moto, abaixei a viseira e deixei o carro pra trás interrompendo o tráfego.”
A última frase faz com ele se lembre da música do Chico Buarque. Começa a assobiá-la. Levanta-se e vai ao banheiro e, com nojo, mija de longe acertando metade do jato na privada e metade no chão, já encharcado de dejetos de merda e urina transbordados do entupimento no encanamento do vaso sanitário e do ralo. O fedor nauseabundo faz com que ele golfe novamente. Dessa vez vomita. Em cima da merda e do mijo no chão do banheiro. Limpa a boca na gravata. Volta cambaleando pra mesa e, Underberg numa mão e cigarro no canto da boca, pega a terceira folha e, embriagado, lê em voz alta:
“ Foi assim mesmo. Eu precisava de comprar mais drogas, tava fissurado. Precisava de dinheiro. Entrei na casa à meia-noite. Amarrei o pai na cadeira e, escopeta apontada pra orelha, pedi as jóias. Disse que não tinha. Falei pra ele que se não me entregasse o que eu tava pedindo, eu ia estuprar a esposa dele. E fiz. Na frente dele. Ele insistindo que não tinha jóias. Que tava falido, que a casa tava hipotecada. Foi quando o filho deles chegou no quarto chorando. Eu não tinha visto o garoto ao vasculhar a casa antes. Larguei a esposa desmaiada na cama e apontei a escopeta pro peito do menininho. O cara desesperou. Falei; “As jóias!”. Ele pediu pelo-amor-de-Deus que não fizesse nada com o filho dele. “Só tem quatro anos! Só tem quatro anos” - ele berrava. Repetiu que não tinha jóia nenhuma. Que não tinha dinheiro. Não acreditei. Apertei o gatilho duas vezes. Dois tiros no peito do menino. Abriu um rombo. Voou longe. O pai começou a vomitar e implorou que eu desse um tiro nele. Eu não dei. Disse pra ele que ia deixar ele vivo só pra deixar de ser mentiroso. Saí sem as jóias”.
Amassa o papel que acabara de ler e coloca-o embolado em cima do cinzeiro. Com o isqueiro põe fogo e fica vendo as chamas transformarem o sórdido depoimento em fumaça e cinzas. Já estava decidido. Não conviveria mais com aquele mundo-cão. Tomara essa decisão depois que do depoimento da magia-negra no cemitério, envolvendo bebês. Dissera “chega!” e esse chega tinha chegado. Pretendia queimar uma a uma das folhas e, ao final, deixar aquela merda toda pra trás. Já a algum tempo estava estudando para um concurso público. Sentia-se bem preparado. O futuro seria esse e ponto final.
Parte pra quarta folha. Já estava divertindo-se com aquilo. Lembrou-se de João 1:1,14 “No princípio era o Verbo. O Verbo era Deus. Tudo foi feito por meio dele. E o Verbo fez-se carne.” Começou a rir, gargalhar. Tinha mais três maços de cigarro e duas garrafas de Underberg na gaveta. E mais vinte gramas de maconha, lembrou feliz. Decide, então, passar a noite queimando folha por folha depois de lê-las todas. Vagarosamente pega a de número quatro:
“ Mercadoria. Era assim que eu considerava o meu corpo, uma mercadoria. Fui michê durante quase oito anos. Tudo pra sobreviver. Alguns clientes pagavam o dobro, até o triplo, se eu não usasse camisinha. Aceitei algumas vezes. Juntei o que pude de dinheiro e comprei dois quilos de maconha. Fiquei dois anos traficando até ser preso. Saí da cadeia e logo voltei para a vida de garoto de programa. Dessa vez juntei dinheiro pra comprar cocaína. Fui no Juramento e peguei trezentos gramas. Na descida dei de cara com a polícia. Carta marcada. Me pegaram pra Cristo. Me tomaram a droga, me levaram pro alto do morro e descarregaram todos os revólveres em cima de mim. Mais de quarenta tiros. Depois disso, só me lembro de acordar nu no IML. Os legistas apavorados. Sobrevivi.”
Começa a rir sozinho. Tira a gravata. Rasga o depoimento que acabara de ler em tirinhas. Pega a maconha e aperta um baseado-vela. Traga o depoimento quatro aos poucos. A onda bate. Pega a quinta folha.
“ Bati. Bati muito na minha mulher. Enchia a cara de cachaça e chegava em casa já descendo a mão nela e nas crianças. Até o dia em que eu, cheio de álcool na cabeça, cheguei em casa com duas mulheres. Minha esposa perguntou quem eram as vagabundas. Falei que eram as minhas namoradas. Ela, histérica, começou a gritar. Calei a boca com um sopapo. Levei as duas pro quarto. Mandei as crianças saírem. No meio da bagunça, minha mulher vem com uma faca e me acerta no pescoço. Faca cega, só arranhou. Desci o sarrafo aos socos e pontapés e coloquei ela e as crianças pra rua. Nunca mais vi a minha mulher.”
Embola a folha e enfia-a toda na boca. Dá um gole no Underberg e engole a massa de papel bebida alcoólica. Começa a gargalhar e a repetir, confusamente, o que tinha acabado de ler. “Espanquei muito na minha mulher. Nunca mais vi a minha mulher.”. Para de recitar o texto engolido e gargalha mais alto ainda. Tá dentro de mim, ele gritava. Engoli essa merda que vai virar merda de novo amanhã. Da merda a merda. Ri mais ainda.
Largando a garrafa, ele recolhe os depoimentos restantes e junta-os com mais outros cinqüenta, sessenta que estavam no canto da mesa.
Vou tacar fogo nessa merda toda de uma vez só. Sente o cheiro do banheiro entupido e decide tacar fogo no escritório inteiro.
Se havia decidido que ia sair desse universo porco e apagar de vez o passado, a coisa não poderia ser aos poucos, ia transformar tudo em cinzas.
Vou tacar fogo nessa merda toda de uma vez só, grita afrouxando o nó da gravata e indo em direção ao vidro de álcool.
Repentinamente batem na porta. Batem na porta novamente. Ele ajeita a gravata, fecha a porta do fétido banheiro e manda que entrem.
Pela intuição, percebe que é mais um cliente. Fala pra sentar-se. Avisa-o que não poderá ajudá-lo, que já havia decidido sair do ramo e procurar outra profissão. O cliente entra em desespero. Diz que ele fora muito bem recomendado. O melhor da cidade. O único. Oferece o triplo.
Ele pensa nas contas e no aluguel atrasado do mofado e escroto escritório. Pega o maço de folhas numeradas, entrega pra ele e fala:
- Sente-se ali na poltrona e leia todos com calma.
- Mas o senhor tem certeza de que todos são inéditos? Vou me ordenar Pastor lá na Igreja e ninguém pode saber que eu estive aqui.
Ele dá mais uma baforada no cigarro, olha pro terno do rapaz e diz:
- Mas testemunhos pra Pastor são estes aqui nesta gaveta, é bem mais caro, cê não vai querer um conto-do-vigário qualquer , né?

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