quinta-feira, 16 de setembro de 2010

ABSOLVIÇÃO


Eu era um pervertido, senhores jurados. Só podia ser o Inimigo. Ele que me fez fazer essas barbaridades, senhores jurados. Como é que pode? Eu, Domenico Soares Fialho de Souza, pai uma filhinha linda, a doce Gislaine, médico, formado em psiquiatria, clínico geral há mais de 30 anos, professor universitário, homem de bem... O Inimigo me obsediava, me forçava a fazer essas atrocidades.
A acusação, como os senhores puderam ver, apóia-se em argumentos psicanalíticos contra mim. Eu refuto. E, de memória, cito José Guilherme Merquior, no texto “A superstição psicanalítica”, que afirma que o poder de sugestão da psicanálise é enorme, – e no mínimo, bem maior do que a sua capacidade de cura.
Sabem porquê digo isso? Porque eu sempre fiz análise, freudiana, e cheguei até a acreditar que o problema era comigo. Superstição pura esse negócio de psicanálise, senhores jurados. Os preços mirabolantes das consultas acabaram com a minha poupança no Itaú. Eu, na época, achava mesmo que a análise um saber racional, e não como um simples curandeirismo sofisticado. Eu estava tão cego pelo processo, senhores jurados, que eu não percebia que estava sob o tal efeito iatrogênico: do mal causado pelo próprio tratamento clínico. Minha freqüência era tanta que eu já partia para a análise já familiarizado com a doutrina e passava a estudá-la no curso do tratamento. Eu acabei virando um analista amador, maniacamente propenso a interpretar o meu próprio comportamento, e os das outras pessoas, com as categorias de Freud - para não falarmos na chatice com que eu insistia no proselitismo .
Hoje, com a força de Nosso Senhor Jesus Cristo, eu enxergo o mal que fiz e sei que estou curado.
[ dois dos jurados gritam “Aleluia!”]
[ o juiz pede silêncio]
Eu era ingênuo, senhores jurados. Ficava ouvindo aquela cantilena de “ Complexo de Édipo” e o tal analista supunha que meu “complexo” resultava de uma fixação na sexualidade infantil, de um ciúme meu, quando criança, em relação ao desempenho sexual dos meus pais, e a repressão desse complexo tinha dado origem a esse meu comportamento quando adulto. Mas, senhores jurados, os senhores não concordam que a taxa de temas de conflito entre pais e filhos do mesmo sexo é, de fato, significativamente mais alta que entre pais e filhos de sexos diferentes? O senhores sabiam, senhores jurados, que os nativos das ilhas Trobiand não conheciam pulsões edipianas ? O triângulo sentimentalmente decisivo, como eu acho, envolve o filho, a mãe e o tio materno (em vez do pai), e a hostilidade do filho pelo irmão da mãe assinala um deslocamento da rivalidade com o pai, nas sociedades patriarcas. Mas o problema é que o tio materno no arquipélago de Trobiand nem sequer coabita com sua irmã. Portanto, a “cena familiar”, cerne da explicação freudiana, desaparece, antes mesmo de poder deslocar-se. Enganação pura não é senhores jurados? Não fica claro, senhores jurados, que a hipótese aventada por Freud não possui nenhum fundamento comprovável?
Que devemos concluir dessa lógica bifronte, senhores jurados? Que as explicações de Freud são do tipo preso por ter cão, preso por não ter. Os psicanalistas costumam apontar, com orgulho, para o fato de Freud ter mostrado que “tudo tem significação” em nossa vida. Mas, justamente, trata-se de não prejulgar o significado das nossas experiências. Por isso é que a moderna filosofia da ciência estipula que, quanto mais uma teoria exclui, mais falsificável ela se torna, e, por conseguinte, mais sujeita ao teste empírico. O mal da psicanálise é que ela padece de um tremendo apetite de inclusão: forceja por adaptar tudo, mesmo o contraditório, às suas pseudo-explicações. Quando se vai ver, caímos no vício que Chesterton ridicularizava em certos biógrafos: a mania de achar tudo tão “significativo”, que, “se o biografado deixa cair seu cachimbo, isso é sinal de sua característica negligência; mas se ele o apanha, isso é típico de seus hábitos cuidadosos...”
[todos riem]
Não podem haver, senhores jurados, argumentos psicanalíticos que possam explicar esse meu deplorável comportamento no passado.
Vastamente furada como explicação da vida psíquica, pasmosamente ineficaz como terapia, a psicanálise se assemelha àquela faca de Lichtenberg: uma faquinha sem cabo, à qual, por outro lado, só faltava a lâmina...
Inclusive, senhores jurados, eu, na época, como a maioria dos analisandos “esclarecidos” , achava que a questão da cura já era. Que “o importante é a gente se conhecer a si mesmo”, inclusive porque, como sabemos, neurose por neurose, “todo mundo é neurótico.” Um absurdo senhores jurados. Meu vício continuava. Eu sabia que fazia mal às pessoas e continuava.
Senhor jurados, eu sei que alguns dos senhores são freqüentadores da mesma igreja que eu, e que os senhores e as senhores não hão de negar que o Mal nos obsedia. Quando estamos desprotegidos, o Inimigo nos persuade, nos convence, nos induz.
O Inimigo me fazia adorar o medo que eu provocava. E o Inimigo me fazia aproveitar desse poder que o médico tem sobre o corpo do paciente. E eu aproveitava. Eu não! Ele, habitando em mim! O corpinho inocente, limpo, nu, como num altar pra ele. Os gemidinhos...aqueles gemidinhos fininhos enquanto eu fazia aquelas coisas. Ele me fazia adorar os gemidinhos. Fui fraco. Me deixei levar. Dezenas, centenas de inocentes.
Eu sei, eu sei que errei. Mas mais do que errar, sei que pequei. Me arrependo disso, e sei que hoje estou curado de todo aquele mal. Sou um homem de bem. Glória a Deus!
Esse meu testemunho, senhores jurados, não só um testemunho para todos nesse tribunal que estão me ouvindo, mas um testemunho de fé.

Aleluia!

[ Aleluia!]

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