quinta-feira, 16 de setembro de 2010

AQUÁRIO


Domenico pagou mais de três mil reais no terno preto bem cortado, marca Ricardo Almeida, sob medida. O nó inglês na gravata, completamente simétrico, à moda do duque do Windsor, dava a altivez e o charme britânico necessário. A ocasião era especialíssima. Valeu cada centavo investido. Mais importante do que a formatura na época da faculdade. Mais importante do que o casamento da filha mais velha. Mais importante até do que o próprio casamento. Estava prestes a receber o grau máximo na consagração nos estudos que um homem poderia receber. Seria em breve um dos poucos Pós-Doutores em Psiquiatria no Brasil. Olhou ao lado do aquário pra garrafa importada de Perrier-Jouët que havia reservado para tomar logo mais, olhando orgulhoso pro diploma. Pagou mais de dez mil reais na garrafa do seleto champanhe. A maior extravagância que havia feito até hoje. Não teve nenhum remorso, seria o seu merecido prêmio. Merecia sim. Afinal, foram quatro anos de árdua e intensa dedicação para desenvolver a pesquisa que considerava, sem falsa modéstia, uma das mais importantes descobertas da psiquiatria no mundo. A tese era revolucionária. Iria impressionar a banca. Que, já sabia, seria seletíssima, composta só de medalhões: Fúlvio R. Junior, pós-doutor pela RUSH University; Derley Macedo de Bastos, primeiro lugar no concurso para livre-docência em psiquiatria na UNIFESP; Gustavo Alcântara, pós-doutor pela Harvard Medical School e autoridade mundial no assunto; Luciano Hummil, livre-docente pela Universidade de Heidelberg e José Carlos Berlo e Castro, doutor em Acupuntura por Notório Saber pela Shandong University of Traditional Chinese. Pra se ter idéia da importância desses cinco reunidos, essa banca representa a autoria de mais da metade dos atuais livros de referência em psiquiatria no Brasil e no mundo.
Conferiu tudo antes de entrar de sair de casa em direção à Universidade: pastas com os documentos pessoais, notebook com os arquivos, pen drive com a apresentação em Power Point meticulosamente confeccionada. Terno alinhadíssimo, barba feita, cabelo milimetricamente penteado. Lembrou-se, antes de sair, de colocar a comida pros peixinhos do aquário. Saiu de casa, trancou a porta. Peito cheio de coragem. Entrou no carro. Trânsito intenso. Quarenta minutos de casa até o local. Chegou com cinco minutos de antecedência. Não se importou, ia dar tempo. Estacionou o carro. Portaria da universidade.
- O auditório no Bloco 3, senhor Domenico, já estão lhe esperando.
Seguro de si, Domenico a passos firmes direcionou-se ao local onde apresentaria a sua preciosa tese. Auditório lotado. Esposa, filhas, parentes, alunos, pacientes, professores, amigos e, no canto esquerdo, à frente do auditório e do telão, os cinco cavaleiros do apocalipse sentados em cadeiras destacadas.. Estufou o peito, ajeitou os óculos. Impávido, subiu no palco. Posicionou-se à frente de todos. Sabia que teria exatos quinze minutos para a explanação. Mais dez, se a banca achasse necessárias, as argüições. Especulou as possíveis perguntas e decorou até as prováveis respostas. Treinara exaustivamente segundo a segundo, palavra por palavra. Tudo cronometrado. Começou:
- Digníssimos senhores da banca. Senhores convidados. Apresentar-lhes-ei um breve resumo dos últimos quatro anos de árduo e intenso trabalho que empreendi para desenvolver e presente tese que, com a maior satisfação, orgulho e respeito, dedico ao meu mestre e orientador o falecido Prof. Dr. PhD Diógenes Lizandro de Alcântara Machado.
Os presentes puseram-se de pé e apludem. Domenico espera que todos se sentem e liga o telão, aparecendo escrita, gigantescamente, o título da tese:
“SÍNDROME DE TOURETTE: NOVAS CATEGORIZAÇOES ORGOGÊNICAS, ESCATOLÓGICO-ORGOGÊNICAS E HEPTO-ORGOGÊNICAS.”
Domenico aponta firme pro título no telão e, no microfone, dispara:
- Este estudo busca recategorizar e recompartimentalizar várias manifestações díspares da Síndrome de Tourette. Sabe-se que Síndrome de Tourette, está presente nos quadros de tiques vocais e que esses tiques vocais podem ser simples comuns, os quais incluem pigarrear, grunhir, fungar,escarrar , bufar e emitir sons guturais.

Domenico tecla no notebook, e no telão aparece uma grotesca imagem em vídeo de uma moça negra, nua, toda suja, agachada no chão emitindo os mais diversos sons.

[Hunghh! Hunghh! Grrhhhhnn! ]
- Portanto, senhores, podemos partir da premissa de que, afirmativamente, os tiques vocais podem ainda ser complexos comuns, os quais incluem repetições de palavras ou frases fora de contexto. Incluímos, portanto, a Coprolalia, que é o uso de palavras socialmente inaceitáveis, freqüentemente obscenas, e a Palilalia repetição de sons ou palavras. Como podemos ver transcrito no slide.
Aparece no telão, com as palavras sendo construídas letra a letra, por um recurso do power point, a frase:
[ Õrra meu! Me enterrou o cabeção do cacetão no cabação e arrancou até carnegão, carnegão.]
Todos no auditório atentos, analisando minunciosamente a enigmática frase. Domenico continua com a apresentação:
- Há também, senhores e senhoras, a Ecolalia, que é a rima de palavras como se fosse um eco. Como este que os senhores podem ler neste slide. Esta manifestação registrada, assim como a anterior, foi colhidas ao longo de quatro anos em um hospital psiquiátrico, como um dos emblemáticos exemplos de estudos de caso.
No telão escrita a frase em letras garrafais.
[Vou botar . Vou botar .Vou botar no seu cuzão até arrancar caroço de feijão! Até arrancar caroço de feijão! Putaquepariu! Putaquepariu! Porra! Putaquepariu!]
Gustavo Alcântara e Luciano Hummil olham-se. Domenico, de olho no relógio, não para de falar:
- Vejam, senhores, que no Transtorno de Tourette são múltiplos os tiques motores e um ou mais tiques vocais. Os tiques vocais do Transtorno de Tourette incluem várias palavras ou sons como estalos, grunhidos, ganidos, fungadas, espirros e tosse comtique vocal simples comum e a Coprolalia, que, como eu já disse, é um tique vocal complexo envolvendo a verbalização de obscenidades. Este tipo de tique está presente em torno de 10% das pessoas com este transtorno.
Domenico deda o notebook novamente e reaparece a imagem do título da tese.
“SÍNDROME DE TOURETTE: NOVAS CATEGORIZAÇOES ORGOGÊNICAS, ESCATOLÓGICO-ORGOGÊNICAS E HEPTO-ORGOGÊNICAS.”
- Senhores, aqui que começo a explanar minhas descobertas e os propósitos deste estudo. Este estudo, senhores, busca recategorizar e recompartimentalizar as mais diversas sub-acepções da Síndrome de Tourette, reclassificando-as individualmente com as neológicas nomenclaturas que batizei de orgogênicas, escatológico-orgogênicas e hepto-orgogênicas. Explico.
Antes de Domenico começar a explicar, Gustavo Alcântara e Luciano Hummil olham simultaneamente para José Carlos Berlo. Os três encolhem os ombros. Continuam ouvindo a explicação.
- Vejam só a transcrição de um estudo de caso de manifestação de Coprolalia orgogênica.
No telão a imagem em vídeo de uma moça negra, gorda, nua, gritando:
[Olha só! Minha buçanha está ardendo da xavasca arregaçada na gonorréia da caralha azeda na bola do saco cabeludo. Putaquepariu, olha só! Olha só! ]
- Agora, senhores, na segunda imagem vemos um estudo de caso de manifestação de Coprolalia escatológico-orgogênica.
Alguns da platéia deslocam-se do fundo do auditório para as poucas cadeiras vazias em frente ao telão. Nele a imagem de um homem branco, dos seus cinqüenta anos, nu, de pé, mão em concha na boca aos berros:
[Vai tomar! Vai tomar no meio da carne morta. Buracão do cuzão estufado de lombriga. Te botei no teu butão e arranquei até caroço de feijão! Aí! Né não? Vai tomar no cu sapatona, fanchona, viada da piranha da sua mãe viadona] - Por fim, vejam o último registro do mesmo paciente que, como já foi constatado, além de sofrer da Coprolalia do tipo escatológico-orgogênica, como acabamos de verificar, também manifesta a do tipo hepto-orgogênica:
[ Cavuquei o caralho escalavrado na bucetona inflamada da porra empurrada na prega arrebentada. Buceta encharcada de porra e de mijo e de chico fedorendo da vadia e de porra de mendingo acumulada! ]
Cinco minutos faltavam para o término da apresentação. Domenico tinha pleno controle da situação. Continuou a explanação:
- Vale aqui citar Roman Herticus, que no seu estudo “Tourette transtorn: extrems cases” afirma que estes transtornos se agravam habitualmente durante a adolescência e persistem freqüentemente na idade adulta e que os tiques vocais são freqüentemente múltiplos, com vocalizações, limpeza da garganta e grunhidos repetidos e explosivos, e por vezes, com a emissão de palavras ou frases obscenas, associadas em certos casos a uma ecopraxia gestual que pode ser igualmente obscena. Mas afirmo e categorizo que essa copropraxia não deve ser dissociada do gestual em novas acepções.
Domenico começa agora a dar o toque final em sua apresentação. Colocar o bolo na cereja. Mostrar a que realmente veio:
- A partir dessas conclusões, senhores, a presente tese “Síndrome de Tourette: as novas categorizaçoes orgogênicas, escatológico-orgogênicas e hepto-orgogênicas.” , ineditamente especula e afirma que pode-se recategorizar e reclassificar em sub-categorias o transtorno de manifestação de Coprolalia, ainda não observadas até então. Saliento o ineditismo da descoberta. Tal especulação não fora feita nem pelos mais respeitáveis estudiosos do gênero. Não encontramos tal associação nem em Bagheri e Burd com o renomadíssimo texto "Recognition and management of Tourette's syndrome and tic disorders"; nem em Leckman e Cohen no Tourette's Syndrome—Tics, Obsessions, Compulsions: Developmental Psychopathology and Clinical Care; muito menos em Robertson MM com o clássico . "Tourette syndrome, associated conditions and the complexities of treatment" , ainda que pequenas e tímidas investidas acerca desse tema encontramos, não muito esmiuçadamente em Williams & Wilkins no artigo , pouco conhecido, Advances in Neurology, Volume. 99, Tourette syndrome.

Fúlvio R. Junior afrouxa o nó da gravata, respira ofegante. Desconcentra Domenico por um instante que, logo, recompõe-se dando prosseguimento:
- Nosso estudo, ousa, portanto afirmar que o transtorno de manifestação de Coprolalia orgogênica associada a uma ecopraxia gestual, a dita copropraxia, se dá , simultâneo aos respectivos urros dos turpilóquios que lhe são próprios. Portanto, o proferimento, acrescentado ao exemplo do vídeo anterior, associa-se intrinsecamente ao gestual que veremos no vídeo a seguir: o movimento de fricção constante da palma da mão esquerda na extensão do braço direito desde o pulso até a região do bíceps, num movimento de vai-e-vem raivoso.
Magro, muito magro, um jovem também nu, cabelo black power desgrenhado, sem os dentes da frente, fala num tom raivoso, fazendo o gesto mencionado:
[ Orra! Caralho! Vou tochar um tronco do braço no cu da virgem maria e do jesus cristo e no padre marcelo rossi e no bispo macedo na putamerda até arrombar o rabo com o tronco do braço! Que raio sô! Diabo, capeta , putaquepariu vai tomar no cu. Ó! Ó! ]
Gustavo Alcântara acerta os óculos, ajeita-se na cadeira, demonstrando desconforto. Não estava entendendo muito, sentia-se como um peixe fora d’água. Continuou ouvindo atento Domenico:
- Continuando com o estudo, podemos afirmar que os transtorno de manifestação escatológico-orgogênicas pode-se associar a uma ecopraxia gestual. Contrariando todos os estudos que existem até hoje acerca deste tema, no vídeo a seguir, verificamos que esta segunda manifestação se dá , concomitantemente ao proferimentos dos respectivos turpilóquios que lhe são próprios, pelo gesto de união da ponta de todos os dedos da mão esquerda levados às próprias narinas e pela assustadora expressão de regozijo. Vejam o vídeo:
O homem, no mesmo local que os anteriores, nu, deitado, cigarro entre os dedos, fezes espalhadas pelo corpo, urra à todos pulmões:
[ Vai mané? Aqui ó! Vai tomar no meio do buraco do seu cu arregaçado! Buceta azeda ! Aqui ó! Da puta-que-pariu da piranha da sua mãe viadona. Aqui ó! Aqui ó! Aqui ó!]
Enquanto o vídeo passava no telão, Domenico ouve ao longe o som que a faxineira da universidade faz com a vassoura, varrendo no estacionamento lá fora do auditório e, por breves segundos, sem querer, faz uma digressão. Pensa em como era paradoxal aquela situação. Ele ali dentro do auditório, imerso naquele aquário intelectual, no dia mais importante e tenso da sua vida, enquanto a faxineira no pátio cagava e andava para o que estava acontecendo lá dentro. Varria, varria e varria sem se dar a mínima conta do que eestava acontecendo lá dentro. Pensou, que neste mesmo instante, provavelmente várias pessoas estariam passando em alguns outros locais por momentos cruciais em suas existências, como o que ele estava, enquanto a vida corria normal lá fora, alheia a isso. Pensou em pessoas dentro de clínicas clandestinas prestes a cometerem um aborto, em pessoas tensas fazendo provas para concursos importantíssimos para suas vidas, em neurocirurgiões em meio às suas delicadíssimas cirurgias, em funcionários nervosos decorando o pedido de aumento pro seus chefes, em alunos fazendo a última prova do ano na escola, em velórios. Instantes cruciais na vidas dessas pessoas. Momentos tensos ou dolorosos que, circunscritos ao ambiente em que estavam, não interrompiam de maneira nenhuma no curso da vida externa. Locais fechados onde a tensão era extrema. Fechados como aquários. Aquários como aquele. Com seus peixes imersos, respirando suas próprias águas, presos às suas quatro paredes de vidro, corroendo-se de nervoso enquanto logo ao lado de fora, como ali no auditório da universidade, a vida corria solta: as faxineiras varriam, os pássaros cantavam, motoristas de ônibus aceleravam, transeuntes a passos rápidos cuidavam cada um da sua própria vida, crianças brincavam, aposentados jogavam damas na praça, mendigos mendicavam... pensou no egoísmo das pessoas. Que o maior mal do ser humano era o egoísmo, o autocentrismo. Achou irônico aquilo, nessa coisa louca da vida, na harmonia do cosmos que continuava e o mundo que girava, rotação e translação, rotação e translação...Riu consigo mesmo da situação. De repente, Domenico deu-se conta do momento de distração e retornou a si num susto, dirigindo-se repentinamente ao microfone: - Por fim, concluímos que o terceiro transtorno de manifestação de Coprolalia, o que classificamos de hepto-orgogênicas, associada também a uma ecopraxia gestual. Esta por sua vez , concomitante com o gestual de apalpar frenético da região genital, num movimento horizontal-vertical e vertical-horizontal, espasmódico e irregular, às vezes retilíneo às vezes não. Como no vídeo do paciente a seguir:
[ Cavuquei porra! Segura no mastruço. Ó só seu porra, ó só! Cavuquei o caralho escalavrado na bucetona inflamada da porra empurrada na prega arrebentada. Ó só seu porra, ó só! ]
Domenico vê que, cronometradamente, termina a apresentação. Dá uma pausa no vídeo que está no telão, clica outro botão e sobre a imagem congelada do homem gordo, preto, barrigudo, nu, aparece, sobreposta, novamente, o título da tese.
Olha pra banca e vê que os avaliadores Fúlvio R. Junior, Derley Macedo de Bastos, Gustavo Alcântara, Luciano Hummil, e José Carlos Berlo e Castro estão de pé gritando “Bravo”, “Bravo” “Bravo”, “Bravo”.
Domenico, sem se envaidecer, impassível, desce do palco em direção ao diploma de Pós-Doutor e à garrafa de Perrier-Jouët.

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