quinta-feira, 16 de setembro de 2010

CABEÇA, TRONCO E MEMBRO


O combinado era esse. Ele não tinha que reclamar. Paraplégico desde que sofreu a lesão na medula espinhal devido ao acidente quando estava limpando o oitão, Francisco sabia que o certo a fazer era isso. E mesmo que não fosse o certo, era a única solução. Tinha combinado com a esposa que seria dessa maneira, sem traumas, sem questionamentos. Até porque, de escrota já bastava a vida financeira dos dois. Fudidos, ela empregada doméstica, salário mínimo, ele ex- segurança de banco, atual assaltante amador. Por isso o oitão. Mas, inexperiente que só ele, nem conseguiu levantar a tal grana pra sair do muquifo que moravam, dois cômodos, dentro de um cortiço asqueroso que dava pra ouvir até o peido do vizinho. Todo dia na mesma hora, começava a peidação. Brincava com a Catarina, sua esposa, que dava até pro pessoal do cortiço combinar horário pelos peidos do cara do 302:
“Faltando quinze pra peidação, cê me encontra lá no escadão, beleza?” ou “Peidação e quinze vai passar um filme maneiro na Globo!”
E morriam de rir. Fudidos de grana, mas felizes.
Até o acidente, a vida sexual deles era perfeita. Sexo todo dia. Todo dia mesmo. Mais por vontade dela do que por dele. Ele que não queria deixar de fazê-la feliz, esforçava-se, até mais do que agüentava, para satisfazê-la ao máximo. Ficava com o membro dolorido. Desconfiava que ela fosse uma espécie de ninfomaníaca. Por ele, a freqüência sexual poderia ser bem menor, umas duas vezes por semana estaria ideal, pensava. Mas todo dia, três gozadas por foda, duas horas de pau dentro acabava tornando, pra ele, a coisa um pouco tortuosa. Mas ele fazia. A amava. Fazia tudo que ela quisesse. E ela queria só sexo, e ele fazia. Sexo animal, sexo bizarro, sexo carinhoso, sexo sado-masô. Sexo de tudo quanto era maneira.
E aconteceu o fatídico acidente. Bláááu! Arma carregada sendo limpa, escapole da mão, cai no chão e dispara certeira na coluna cervical. Meses de internação. A notícia caiu como uma bomba na cabeça:“tetraplégico”. Quase entrou em parafuso. Tornara-se, de uma hora pra outra, num inválido, num inútil. Dependia da mulher pra tudo e ela fazia tudo pra ele: banho, barba, higiene, comida na boca, papel higiênico na bunda, pentear cabelo, cortar as unhas, tudo. E ele, por sua vez, não podia fazer nada por ela. Ficara revoltado principalmente pela a sua impossibilidade de satisfazê-la sexualmente. Ainda mais ela, faminta de sexo como sempre fora.
Tinha ouvido que para um paraplégico recuperar a vida sexual o principal era trabalhar a cabeça. Que o retorno da função sexual depende de muitos fatores. Depende da extensão da lesão medular, incluindo o nível (cervical, torácico, lombar, sacral) e se a lesão é completa ou incompleta. Também, fatores sociais e psicológicos, assim como a habilidade inter-pessoal do paciente, orientações sexuais, o estado em que encontra-se o casamento e a abordagem psicológica da nova imagem do seu corpo. Trabalhar psicologicamente a auto-imagem. Auto-imagem? Olhar-se no espelho era a última coisa que ele queria fazer.
A psicóloga, Drª Mirtes, que o visitava rotineiramente depois do acidente, viera com o papo da “vida sexual alternativa” para os deficientes físicos. Ficava dizendo:
- Francisco, você precisa saber que o deficiente físico precisa romper, antes de tudo, com o próprio preconceito e redescobrir que é capaz de seduzir, pois um dos aspectos mais importantes da sexualidade é a sedução. Como se seduz alguém? É como um felino com sua caça, focaliza-se o outro sabendo das fragilidades e potencialidades. Quando se seduz, o que se deseja é uma troca afetiva, mas você precisa saber quais são as suas forças, Francisco. Se alguém acha que não tem força nenhuma, nenhum poder de sedução porque é deficiente, se a cadeira de rodas é um peso enorme, o outro sempre vai vê-lo no papel de amigo. Aí fica difícil para a pessoa que não tem deficiência se envolver. E a sua mulher não é sua amiga, é sua fêmea. Você não concorda Francisco?
Ele odiava esse papo. Achava humilhante ouvir isso de uma mulher, ainda que coroa. Ele sabia que era um inútil e aquela comiseração, aquela compaixão, estava fazendo ele se sentir mais merda ainda. Não tava a fim de tentar nenhuma vida sexual alternativa. Estava preocupado com a esposa. Sabia que o que ela queria era ser preenchida por um cacete. Nada de cunnilígus, dedinho mole, carícias. Queria era uma manjuba no meio das pernas.
Daí o combinado: ela podia levar quem quisesse pra casa pra trepar. No começo ela relutou, ficou com pena dele, não queria traí-lo. E ele, visando a objetividade, deixara bem claro que a única saída era essa. Ele precisava de alguém que cuidasse do seu tronco inerte e ela de alguém que satisfizesse as necessidades sexuais. Sendo assim, argumentava Francisco, não haveria traição, pois existia consentimento. E se a necessidade dos dois era exclusivamente física, duas regras ficaram estabelecidas. A primeira seria de que ninguém além dela poria as mãos no corpo de Francisco, nem pra limpar nem pra nada. E a segunda seria que quando ela trouxesse homens pra casa, sempre em casa, nunca num motel e não poderia repetir nenhum, criar vínculo com ninguém, apenas sexo. Apenas o pênis que faltava. E combinaram assim.
E ela passou a levar tudo quanto era homem pra quitinete. Cada dia um cara diferente. Pretos, brancos, mulatos, japoneses, gordos, magros, engravatados, pés-rapados, tudo quanto era homem que ela via na rua, e que se encantavam por aquele rabão de mulata sargenteli, a Catarina trazia pra casa. Ao entrarem no cafofo estranhavam aquele cara na cadeira-de-rodas ao lado da cama, parado, com cara de estátua, mas logo logo a Catarina os tranqüilizava:
- Esquenta não, é meu marido. Aleijado. Não fede nem cheira.
- E nem fode! - Respondeu o branquelão gargalhando.
E ele ficava quieto. Só olhando. Desse dia em diante ela começou a pegar pesado nas ofensas:
- Tá vendo aleijado? Olha pra vagabunda da sua mulher sentando na piroca desse crioulo. Isso é que é homem, não um impotente inútil igual a você!
Passaram a ser rotineiras as humilhações. Teve uma vez que um camarada que bêbado tirou à força a calça do Francisco só pra confirmar a impotência. O cachaceiro comendo a Natália de quatro, e gritando pra ele com as calças arriadas:
- Porra aleijado, olha pra sua pica e olha pra minha. Cê nunca mais vai conseguir fazer isso, comer o cuzinho da vadiada sua mulher. Tu é um merda mesmo.
E o Francisco, resignado, sabia que se essa de ofendê-lo durante as fodas ia deixar a Natália mais feliz, ele aceitaria. Ela estando mais feliz, mais garantia de que ela estaria lá por mais tempo pra cuidar dele, se Deus quisesse, até o final da sua vida.
Quase todos os vizinhos do cortiço sabiam do que rolava nas madrugadas na casa do Francisco, principalmente pela barulheira da Natália gemendo. E iam, durante o dia lá pra prestar solidariedade ao corno consentido:
- Porra! Aceita isso não rapá! Tu é aleijado mais ainda é homem, bota essa vadia pra fora da sua casa! – disse uma vez o velhinho vizinho do 209.
O coroa do apartamento 311, militar reformado, quase todo dia ia falar com o Francisco:
- Cê quer que eu dê um corretivo nessa vadia? Eu sei que você está doido pra fazer isso, mas como é cadeirante, não pode. É só você autorizar que eu boto ela daqui pra fora na porrada. Nunca mais ela volta!
E ele explicava a situação, mas quase ninguém entendia. Não admitiam essa situação. Ela era uma vadia e pronto! Todo mundo achava isso. E ele tava cagando e andando pro que achavam. Só queria estar de dente escovado, bunda limpa, comidinha na boca, banho tomado, barba feita, lençol lavado e cueca cheirosa. Foda-se o resto. Foda-se o mundo.
Até que certo dia, três da tarde, batem na porta da quitinete. Ele sozinho em casa manda entrar. Entram o velhinho do 209, seu Adamastor, e uma moça que fora apresentada como sua filha.
- Olá senhor Francisco! Meu nome é Clara. Serei breve. Ontem o meu pai relatou-me da sua situação. Refiro-me à sua situação física. A matrimonial, não me interessa, ainda que meu pai tenha insistido em contar. Mas, voltando ao que eu ia dizer, sou médica especializada em estudos com transplantes de células-tronco e estou desenvolvendo um projeto numa clínica em Bogotá, na Colômbia, desde o mês passado. Esse projeto consiste em reabilitar pessoas que tiveram lesões na medula espinhal. Essa técnica de regeneração medular com células-tronco foi desenvolvida por um neurologista português e consiste na retirada de células da mucosa olfativa do paciente, localizada a um milímetro da massa encefálica. Essas células têm um alto poder de regeneração das conexões perdidas. A pesquisa começou em 2001. E eu comecei a pesquisar nessa época. Desde então, pelo menos 45 pessoas, vítimas de lesão medular, já foram submetidas à técnica, com bons resultados muitos deles recuperaram a sensibilidade perdida nos membros afetados. Alguns até já estão ensaiando um passos sozinhos. E por isso, senhro Francisco, venho aqui: O senhor aceitaria se submeter ao nosso tratamento? Quanto às despesas de passagem, hospedagem e tratamento, pode deixar por conta da clínica. E então, aceita? Só peço que, se aceitar, ninguém, mas ninguém mesmo, pode saber onde o senhor foi e o que foi fazer, nem a sua esposa. E outra coisa: o senhor viajará com um nome falso, ficará anônimo durante todo o tempo do tratamento.
Francisco, no mesmo instante separou seus trapos e deixou um bilhete para a Catarina antes de partir:
“ Meu amor, te amo. Sei que me ama também. Mas nosso relacionamento não está dando certo. Está faltando amor-próprio. Eu não estou me amando nem você está se amando. Estou partindo. Talvez nos encontremos por aí. Beijos. Francisco.”
E Francisco foi. Passou pela tal cirurgia de regeneração medular com células-tronco retiradas da sua própria mucosa olfativa. Sabia que era uma cobaia. Ficou dois meses na clínica de Bogotá. Fez fisioterapia. Tratamento intensivo. Uma equipe só pra ajudá-lo a se reestabelecer. E conseguiu. Depois de seis meses e vinte sete dias ele estava andando de novo. E sentia suas pernas perfeitas. Só tinha um problema: não conseguia ficar de pau duro de jeito nenhum. Tentou. Se esfregou em quase todas as enfermeiras colombianas e nada. Duas delas ficaram ao mesmo tempo lambendo a piroca morta e nada. Ficou desesperado. Deram revistas de sacanagem pra ele ler, passaram filme pornô, e nada. Desistiu. Contentou-se com o fato de pelo menos estar andando novamente. Assinou os documentos que precisavam. Agradeceu a Clara. Pegou o primeiro vôo para o Brasil e foi direto pro muquifo em que morava. Chegou às quatro da tarde, nenhum vizinho o viu chegando. Abriu o quartinho com a chave que ainda tinha. Não tinha ninguém em casa. Catarina estava trabalhando, pensou. Olhou pra velha cadeira de rodas e, só de ironia, sentou-se nela. Ficou lá esperando ansiosamente a esposa. Muito cansado, acabou dormindo. Acordou com a chegada da Catarina acompanhada por um cara mal encarado. Os dois olham para o Francisco. O cara pergunta:
- Quem é esse?
Catarina, sem conseguir esconder o ar de felicidade;
- Esse é o aleijado do meu marido. Um bosta. Um zero à esquerda. Não esquenta não. Vem cá e me come com força pro meu marido ver o que que é um macho na cama!
E o pau do Francisco ficou duro na hora.

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