quinta-feira, 16 de setembro de 2010

FOTINHA DE TUMBA


Apesar de seus quinze anos, era depressivo. Era agressivo e depressivo.
A vó que o criara desde os treze, rude na instrução, nunca havia procurado tratamento pro garoto, dizia que era coisa da idade. Mas quem tivesse um pouquinho mais de sensibidade ia perceber que esse ar sorumbático, essa afazia, esse desânimo constante só podiam ser sintomas de depressão. Claro que não era difícil de saber o motivo: perdera o pai pra diabetes aos nove anos e a mãe pro câncer aos treze. Acompanhou todo o sofrimento da mãe, cuidou dela até a morte, ouvia seus gritos de dor e desespero e queria estar no seu lugar. Quando, já prestes a morrer, ela estava na UTI, ele não desgrudava. Ficava com ódio quando os enfermeiros iam limpá-la, limpar suas partes íntimas, limpar as feridas, as escaras que apareciam sobre o delicado dorso de sua mãezinha. Queria ele mesmo fazer isso. Deixaram só uma vez, de tanto que ele insistiu, mas ao cair convulsivamente no choro, impediram que ele continuasse. Enquanto estava ao lado da mãe na UTI, às vezes ia olhar os outros pacientes em tratamento intensivo no quarto. Ficava impressionado como todos, sem exceção, todos, tinham um fétido e nauseabundo mal hálito. Negros, brancos, velhos, bichas, crianças, todos fediam à carniça. Devia ser algo comum em quem tivesse em UTI, pensava. E ficava triste ao perceber que da sua mãezinha é que saia o odor mais forte. Queria passar pasta de dente na sua boca, mas como estava entubada, não dava. E até que, depois de um mês e doze dias de sofrimento, sozinho na sala de espera, recebeu a notícia do médico de que ela havia “dado óbito”. Assim mesmo, na lata, do escroto do médico insensível, que ao terminar de falar “dado óbito” virou as costas, como quem estivesse falando de uma televisão, de um rádio que acabara de perder a utilidade. Ele sozinho na vida, sem um irmão pra compartilhar a dor, com os tios e primos morando em outra cidade e que estavam cagando e andando pra ele, só tendo a vó, a Dona Almerinda, velhinha, viúva, quase caduca que, ironicamente, ele é quem tinha que cuidar, dar banho.
Daniel tentava ser um garoto normal, se esforçava, mas na escola ninguém ia com a cara dele. As meninas o chamavam de Frank, associando sua protuberante testa ao sinistro personagem de Mary Shelley . Isso doía mais nele quando saía da boca da Jaciara. Que ele tava a fim, mas que ela, além de não corresponder ao sentimento, só se dirigia a ele como Frank.
- Me empresta uma sua régua aê Frank! - e todos na sala riam do deboche da Jaciara.
Tentou se matar duas vezes. Tomou todos os remédios da vó de uma vez. Só deu sonolência e caganeira. Na segunda tomou chumbinho, mas não sabia que se tomasse demais, como tomou, não ia morrer. Ficou no hospital, mesma UTI que a mãe ficara, e sobreviveu. Sobreviveu com uma úlcera crônica. Estômago às brasas. Piorava com os dois maços de Free que fumava por dia.
Seu único amigo era o Bruno. Conhecera no campinho. Um pivete órfão, largado. perverso, que vivia de pequenos furtos. Mas se divertia, às vezes com o Bruno. Não que ele gostasse das diversões que o Bruno inventava, achava-as até meio coisa de doido, mas como era seu único amigo, sua única ponte de conexão com o mundo, não desgrudava do Bruno. Pegavam escondidos cavalo dos outros no pasto, lá no morrão e, unha na crina, sem sela mesmo, galopavam até o cavalo dobrar as pernas de cansaço. “Surravam” o cavalo ao máximo. Mas em se tratando de judiação com animais, o Bruno gostava mesmo é de afogar gato no rio, colocava o gato dentro de uma gaiola de passarinho, amarrava uma cordinha e deixava o gato submerso, até quase se afogar e tirava, e recolocava, e o bichano morria, e Bruno ia atrás de outro gato. Uma coisa sem lógica, pensava Daniel. Não tinha pena dos gatos, mas achava a brincadeira sem lógica.
Uma das diversões preferidas do Bruno era ficar de tocaia no cemitério, no alto do barrancão, chupando manga e esperando os macumbeiros fazerem seus despachos lá no cruzeiro.
E quase toda semana eles iam lá. Daniel não gostava dessa diversão, não achava maneiro. Ficava mais deprê ainda. Sempre que iam subir pro barrancão ele, Daniel, parava entre os túmulos pra ficar olhando as fotos das tumbas. Aquilo acabava com ele. Aquelas fotinhas antigas, ovaladas, meio encardidas, com o rosto das pessoas que estavam enterradas ali mesmo, à sete palmos. Não sabia porque, mas ficava lendo todas as datas de nascimento e morte que tinham embaixo das fotinhas das tumbas. Achava aquilo muito baixo astral, mas lia e ficava fazendo o cálculo da idade que a pessoa morreu. Parecia uma compulsão. Lia todos os que via. Ficou impressionado ao constatar que a maioria das pessoas morre antes de ficar velhinha. A maioria era nova. Regulavam idade com a da sua mãe quando morreu: quarenta anos. E o seu pai, trinta e sete anos.
Meia noite, insistia o Bruno, era o melhor horário pra ir, tinha macumbeiro à doidado. E iam. E ficavam escondidos até que a pessoa, toda paramentada com as roupas do orixá, falando sozinha, começasse a gargalhar. O Bruno saía correndo pra cima da pessoa, segurando um cacete de pinho na mão e enchia de paulada. Paulada a vera mesmo. De quebrar o braço. De rasgar o rosto. Já devem ter botado todos os orixás pra correr. Pomba-gira, Zé pelintra, Exu, Preto-velho...Daniel ficava cabreiro quando alguns deles, antes de virar correndo a esquina das lápides, parava e ficava olhando pra sua cara, como quem diz “o seu tá guardado”. Quando acontecia isso, ele parava e ficava encucadão. A brincadeira perdia a graça. Só o Bruno achavam engraçado ver o camaradinha de cartola, capa preta e vermelha, charuto, correndo igual criança embaixo de cacetadas e ofensas:
- Corre Exu filho de uma rapariga, macumbeiro filho-da-puta, porco, volta pro inferno. - Numa ira que assustava até o Daniel.
E logo depois do espancamento, esgoelava:
- Vem Daniel, me ajuda! Chuta que é macumba das braba, caralho! Chuta essa porra! Vamo mijar em cima!
E lá no cemitério, mais de meia noite, o silêncio era interrompido pelo urro dos dois espalhando a pontapé as velas acesas, as galinhas pretas, as garrafas de marafo, a farofa. E as vezes urinavam e cagavam em cima. Ficava uma imundície só. E quando o vigia noturno chegava, eles já estavam longe, abraçados, eufóricos.
A euforia era na hora pois, logo depois, sempre batia um arrependimento, e Daniel tentava dissuadir o Bruno da brincadeira. Queria parar de voltar lá. Mas o Bruno respondia:
-Cagão! Tá com medo do cemitério? De saírem mortos vivos fedendo à carniça da catatumba? Larga de ser cagão rapá! Ou tá com medo dos macumbeiros? Porra, superstição essa merda! Esses filhos da puta ficam lá fazendo maior imundície no cemitério, lá na cachoeirinha também, e gastam a maior grana e ficam achando que vão conseguir aleijar alguém fazendo despacho pra capeta. Não acredito nessa merda. Pura babaquice mané! Quer aleijar, vai lá você mesmo e dá uma martelada na coluna. Vê se um fantasma vai conseguir fazer isso? Ignorância!
Bruno tava certo, era medo que ele tinha. Mas não era medo do santo, do ilusório, da fantasia de que existem essas porras, o medo era justamente das pessoas que acreditavam naquilo, nos macumbeiros. Tinha um raciocínio que partia da seguinte lógica: Se uma pessoa quer que outra fique aleijada ou morra e recorre à macumba para isso, acreditando realmente que a macumba o fará, o sentimento de ódio e a maldade acabam sendo legítimas, pois ela acredita que acontecerá. A intenção está lá, só lhe falta a coragem pra ir pessoalmente dar a tal martelada na espinha da outra pessoa..
Tentava argumentar isso com o Bruno mas sempre ouvia a resposta de bate-pronto:
- Aí é que tá mané! São tudo covardes! Se tivessem culhão iam pessoalmente barbarizar com a pessoa que eles odeiam, usariam serrote, martelada, facada... E se não fazem é porque são bunda moles. Ficam fazendo essa imundície nas encruzilhadas, nos cemitérios, nas cachoeiras achando que o inferno vai ajudar eles a resolver seus poblema. Não têm a crueldade que a gente temos. Esquenta não rapá. Vamo lá.
E foram novamente. E esperaram. E se esconderam. E baixaram o pau no Exu Caveira e no Zé Pelintra e na Preta-velha. Bateram muito. Bateram de corrente. Bateram de cacete de pinho. Bicudo de botina biqueira de aço no rosto do Exu Caveira. Giletaram o seio esquerdo da Preta-velha. Ficou uma tripa branca escorrendo do seio esquerdo. Ela caiu ali mesmo e desmaiou. Os outros dois tentaram protegê-la e apanharam mais ainda. O Zé Pelintra, naquela de malandragem das antigas, terno branco com lenço vermelho no bolso, chapeuzinho panamá, ginga no sapatinho duas cores, na primeira suigada que tentou dar , tomou do Bruno uma correntada na orelha que rasgou de fora a fora. Bruno e Daniel eram moleques mas eram ariscos, bons de porrada. O Bruno, cobra-criada das ruas, já tinha , em outras ocasiões, sozinho, porrado três ao mesmo tempo. Ali era fácil, não tava brigando com marginal de FEBEM, mas com “três macumbeiros de merda, três bunda-moles”, como ele gritava enquanto o pau comia. E botaram os orixás aos berros pra correr. Só ficou a Preta-velha ali, deitada de bruços desmaiada numa poça de sangue, vestidinho de renda branco levantado, lenço na cabeça, calcinha vermelha fora do lugar mostrando um parte da buceta inchadinha de Preta-velha, que de velha não tinha nada. Até conhecia ela, era a Catarina, ex-enfermeira do seu avô. Não deu outra: Comeram ali mesmo, barbarizaram muito. Daniel, enquanto metia por trás no rabo da Preta-velha, ao deitar-se por cima, sentiu o hálito da mulher. Lembrou da sua mãezinha. Lembrou do seu avô. Recuou num pulo. Cedeu a vez ao Bruno que, depois de comer o cu e a buceta, não se dando por satisfeito,pegou uma daquelas velas de sete dias, cospiu a borda e enfiou no cu da mulata. Deixou ela lá, desacordada, quase morta.
- Vam bora Daniel... Hoje a festa foi boa.
E bicudaram o despacho. E saíram andando.
Só que dessa vez, o feitiço e o feiticeiro se uniram.
Quando o Bruno e o Daniel estavam quase virando o último quarteirão de jazigos, pra sair do cemitério, dão de cara com o Exu Caveira e o Zé Pelintra. Cada um dos santos com um facão na mão. E a carnificina foi ali mesmo. E o guarda-noturno do cemitério, ouvindo a gritaria, nem foi lá porque sabia que era coisa dos moleques chutando macumba. E o Bruno tomou uma facãozada no braço mas conseguiu fugir com a mão esquerda pendurada por uma pele. E o Daniel ficou encurralado, tentou suplicar, mas teve sua cabeça decepada por dois facões enferrujados. Foi esquartejado. Suas tripas espalhadas por entre as tumbas. Sua cabeça, separada do corpo, foi colocada como a de uma galinha lá no cruzeiro, ao lado dos despachos esparramados.
Duas semanas depois, a funerária liga pra Dona Almerinda pedindo uma fotinha três por quatro pra colocar na tumba do menino.

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